Não é só a extrema-direita, os neoliberais também têm alimentado o negacionismo climático
Existe um negacionismo climático que não se baseia em palpites que colidem com o senso comum. É um negacionismo ao qual a Economia neoliberal fornece blindagem.
É fácil desembaraçar-nos dos argumentos negacionistas de Rita Maria Matias. Quer nos panfletos que a deputada de extrema-direita distribuiu antes de ser expulsa da FCSH-UN, quer nos momentos parlamentares em que tropeça em relatórios sobre as alterações climáticas, ou em várias publicações do Chega sobre alterações climáticas, a argumentação é trivialmente desconstruída.
Como em várias outras publicações da extrema-direita internacional, os argumentos ficam-se por negar a existência das alterações climáticas ou tentam resumi-las a algo conduzido por fenómenos como ciclos solares - ou mesmo a teorias da conspiração globalistas. Recentemente, ganhou popularidade dizer-se que conduzir a Transição Energética exige danos ambientais mais gravosos que as próprias alterações climáticas, e que já foi desmontado.
Mas existe um outro negacionismo climático. Ao contrário do negacionismo mais simples, não se baseia em palpites que, logo à partida, colidem com o senso comum. É um negacionismo ao qual a Economia neoliberal fornece blindagem. Apesar de não serem os únicos, a Iniciativa Liberal e os seus quadros são os principais promotores e porta-vozes na política portuguesa.
E A ECONOMIA?
No debate para as eleições legislativas em 2022 entre Inês Sousa Real do PAN e João Cotrim de Figueiredo da Iniciativa Liberal, o assunto chegou às alterações climáticas. O então presidente da IL negou o termo do uso emergência climática ao dizer “não há possibilidade de reduzir emissões, sem reduzir atividade económica e, portanto, empobrecer. E nós queremos enriquecer Portugal”. “Parece que estamos perante algo que é preciso tratar com uma urgência tal, que todos os custos são justificados. Não são”.
Em contraste com as personagens do Chega, notamos logo à partida uma diferença drástica na argumentação de Cotrim. Nunca nega as alterações climáticas, apenas as contrabalança com os custos para a economia.
Passados quase dois anos desde o debate televisivo, a fábrica da Autoeuropa em Palmela (certamente muito valorizada por Cotrim) teve uma paragem forçada de quase dois meses, com quebras na produção e vários despedimentos. A interrupção deveu-se a uma quebra na produção de uma fábrica de componentes na Eslovénia, interrompendo assim a produção a nível europeu.
Num facto que passa ao lado daqueles que pensam como Cotrim, esta interrupção deveu-se a um tipo de fenómeno que tem muito de alterações climáticas. Neste caso, foram “as piores cheias de sempre” na Eslovénia que a impediram de fornecer a Autoeuropa e forçaram a interrupção. Perante a intensificação e generalização das alterações climáticas, torna-se evidente que nunca será possível qualquer economia funcionar no seio do caos climático.
O tipo de contradição de Cotrim é evidente e conduz, simultaneamente, muito do pensamento institucional. Foi a ortodoxia Económica quem desenvolveu este enquadramento perverso.
O PRÉMIO NOBEL DO NEGACIONISMO
William Nordhaus é um economista estadunidense nascido em 1941 galardoado com um prémio Nobel da Economia em 2018 por investigar as alterações climáticas. Uma pesquisa rápida num motor de busca indica que “criou um modelo quantitativo que descreve as interações entre o crescimento económico e o clima”.
Em várias publicações, Nordhaus é denominado “pai da Economia das alterações climáticas”. À partida, podíamos considerar positivo a investigação em Economia falar das alterações climáticas. No entanto, se investigarmos o que Nordhaus vem defendendo há décadas, teria sido melhor para o mundo se nunca tivesse sabido que existem.
Com dois modelos quantitativos, DICE e RICE, Nordhaus contrasta dois pesos: alterações climáticas e crescimento económico. Seguindo a lógica marginalista da economia ortodoxa, os custos de combater as alterações climáticas – em termos do crescimento do económico (PIB), de que se abdica – são comparados com os custos de não o fazer e de se sofrer as consequências de um ambiente degradado. Esta é precisamente a lógica por detrás da argumentação de Cotrim Figueiredo.
Logo à partida, e perante casos como os da Autoeuropa, podíamos ver as limitações do raciocínio, mas olhemos para as conclusões.
O CAOS CLIMÁTICO É ÓTIMO PARA O NEGÓCIO
Depois de fazer as contas, Nordhaus chega à conclusão de que a melhor política (ótima) seria permitir um aquecimento médio de 4°C (o aumento está por volta dos 1,2°C). Segundo este, o crescimento económico (mundial) compensaria os danos das alterações climáticas até aos 4ºC.
Mesmo se à partida não percebermos nada de Economia e pouco de alterações climáticas, o resultado é estranho. Se olharmos para a última idade do gelo, há mais de 20.000 anos, as temperaturas eram 4°C mais frias do que nos dias de hoje. Apesar de as comparações para aumentos e diminuições das temperaturas não serem diretas, o mundo era radicalmente diferente, com glaciares a cobrir boa parte da Europa e da América do Norte. Seria difícil imaginar que o crescimento económico de que Nordhaus fala compensasse boa parte do hemisfério norte coberta de gelo.
Um mundo 4°C mais quente é difícil de prever. Em geral, os estudos sobre as consequências pecam por serem conservadores, isto é, subestimam o impacto das alterações climáticas.
No mundo que Nordhaus considera ótimo para o futuro da humanidade, no mínimo dos mínimos, cidades costeiras seriam inabitáveis, haveria enormes dificuldades no abastecimento alimentar, migrações em massa, mais secas onde hoje já se vive em seca e dilúvios onde já há muita água, aumento de desastres como ciclones, entre outros. Por outras palavras, perdas incalculáveis de vidas.
Concluir que o crescimento do PIB seria capaz de compensar as catástrofes descritas acima é um atentado ao senso comum, e nem sequer se pode dizer que as propostas de Nordhaus seguem argumentos razoáveis para confluírem numa conclusão errada.
Nas conclusões do Nobel, não podemos deixar de notar a falta de uma interação essencial: como é que o PIB do planeta cresce num mundo marcado por catástrofes naturais e, ainda mais crucialmente, com dificuldades no abastecimento de comida? É difícil imaginar uma economia a crescer quando não consegue alimentar a população e as infra estruturas sofrem danos constantes.
Com a seca que tem afetado em especial o sul da Europa, foi em países como Portugal e Espanha que os preços dos alimentos mais subiram no continente ao longo deste ano. Apesar da recente crise do custo de vida ter como centro o aumento dos preços da energia, as consequências das alterações climáticas já multiplicam estes graves fenómenos.
A nível mundial, com temperaturas recorde e com precipitação historicamente baixa, a Índia impôs restrições às exportações de arroz (sendo o maior exportador do mundo), atirando o preço deste cereal no mercado internacional para máximos de 12 anos nos mercados mundiais. A par da escassez de alimentos, os recordes de preços do azeite devido às secas dão lugar a fenómenos securitários.
A intensificação das alterações climáticas trará certamente uma multiplicação destes fenómenos, que serão cada vez mais intensos e destrutivos. As conclusões de Nordhaus colidem não só com as previsões razoáveis, mas também com os desenvolvimentos atuais.
UMA TEORIA SEM PÉS NEM CABEÇA
Os pressupostos de Nordhaus sobre a interação entre os efeitos adversos das alterações climáticas sobre o crescimento do PIB são tão ou mais chocantes que as conclusões.
Como afirmado pelo próprio, “os danos são estimados ser de 2% do produto [PIB] com um aquecimento global de 3°C e 8 por cento do produto com 6°C de aquecimento”. Se nos focarmos no segundo número, trata-se de um cenário incrivelmente difícil de prever, mas que, com muitas certezas, traria efeitos apocalípticos. Para Nordhaus, apenas perderíamos 8 em 100 euros de produção devido às alterações climáticas.
Na base desta estimativa, está uma escolha curiosa de quais setores da economia serão afetados pelas alterações climáticas. Para Nordhaus, tudo o que não está exposto ao exterior (e aos elementos) – mineração subterrânea, indústrias, finança, serviços do Estado, entre outros – não sofre com as alterações climáticas.
Em primeiro lugar, é duvidoso que catástrofes naturais não impliquem efeitos diretos sobre todas as atividades, como se tornou evidente na Autoeuropa. Em segundo, Nordhaus vive numa ficção onde atividades como finança e seguros vivem num mundo à parte, criando o seu próprio valor. A dependência que têm da atividade da economia “real” é omitida.
Só é possível aceitar estes pressupostos com uma visão muito criativa (no pior sentido possível da palavra) da economia. Apenas com uma noção delirante de produção económica alheia a qualquer valor real, é aceitável o crescimento económico continuar quase sem interrupções com um clima radicalmente diferente.
Num relatório da revista científica Lancet que, para 2022, estima a produção perdida devido ao stresse de calor, mostra que vários territórios, em especial no Sul Global, já sofrem quebras significativas no PIB. O valor é estimado em 4,1% para África, 2,7% para “ Pequenos Estados insulares em desenvolvimento” (onde Cabo Verde é incluído) e 2,6% para a Ásia.
NEOLIBERALISMO VITORIOSO
Argumentos como os de Nordhaus surgem como um contrapeso aos da ciência climática e aos apelos a uma ação urgente. Em 1988, o cientista climático James Hanseen testemunhou perante o Senado dos EUA de que estava 99% certo que o “aquecimento global está a afetar o nosso planeta agora”.
O final da década de 1980 e o início de 1990 foram cruciais. Foi quando passou a existir um amplo consenso de que as alterações climáticas tinham de ser enfrentadas, e também quando os esforços para as combater teriam sido mais eficazes, já que a redução de emissões teria sido feita a partir de um ponto muito mais baixo do que o atual.
Foi precisamente nestes anos que os argumentos de Nordhaus ganharam espaço. Foi criado um enquadramento perverso, em que os argumentos dos cientistas climáticos são contrastados com o “crescimento” da economia. Em linha com a prática neoliberal, o que o crescimento da economia significa – alimentação ou campos de golfe – é irrelevante. Assim, enquanto o trabalho de ciência climática era colocado de lado, os modelos fantasiosos de Nordhaus eram promovidos a ciência.
Este foi de tal forma influente, que no relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas das Nações Unidas em 1991, consta: “Atividades económicas como a agricultura, floresta, pesca e mineração estão expostas aos elementos e vulneráveis às alterações climáticas. Outras atividades económicas, como manufatura e serviços, acontecem geralmente em ambientes controlados e não estão realmente expostas às alterações climáticas”.
A ARTICULAÇÃO DA CATÁSTROFE
O galardoar de Nordhaus com o prémio Nobel da Economia cimenta o pior do que o galardão se tornou: um meio de justificar mau pensamento económico, equiparando-o a ciências legítimas. Personagens como Milton Friedman e Friedrich Hayek, que tiveram mais a ver com a promoção dos interesses dos ricos do que com avançar a fronteira da ciência, também foram titulares do mesmo prémio.
Derradeiramente, a partir do pensamento falacioso de Nordhaus, os apelos de cientistas climáticos para uma redução drástica das emissões puderam ser apresentados como fantasiosos, desligados de uma realidade em que o crescimento económico – pelo menos como definido por alguns – é uma necessidade mais vital que a preservação do planeta.
A “racionalismo” económico de Nordhaus fez trio com a austeridade pintada de verde: medidas como a subida do preços dos combustíveis de Emmanuel Macron que espoletou o movimento dos coletes amarelos, ou a recente iniciativa (entretanto desistida por razões eleitoralistas) do Imposto Único de Circulação (IUC) em Portugal. Não nos esqueçamos ainda que este “racionalismo” tem sido ainda promovido por think tanks neoliberais (e negacionistas climáticos) financiados por bilionários fósseis como os irmãos Koch.
Apesar de não ter sido o trabalho de Nordhaus (e de outros economistas seus pares) a expandir as infraestruturas de combustíveis fósseis para níveis que nunca deveriam ter tido, foi ele quem forneceu a articulação ideológica para o fazer, enquanto iam sendo provadas ser uma ameaça ao bem-estar da espécie humana.
Hoje, empresas como a Galp conseguem em simultâneo declarar reconhecer “a importância da redução da intensidade carbónica das suas atividades e produtos” e estar “preparada para manter ‘investimento muito significativo’ no petróleo”. Têm a agradecer a Nordhaus pela compatibilização desta contradição.
O crescimento económico prometido por Nordhaus é a peça essencial para este negacionismo articulado nas folhas do Microsoft Excel. A densidade dos erros no pensamento de Nordhaus vão além das descritas. Indicadores como a “taxa de desconto” e a “suavidade das funções de danos na economia” atrapalham a desconstrução dos argumentos da Galp e de Cotrim.
Este negacionismo não nega diretamente as alterações climáticas, e até permite exprimir preocupação com elas. O resultado é a IL ter sido o único partido a chumbar a lei de bases do clima, enquanto apresenta propostas ineficazes que tresandam a neoliberalismo - aqui e aqui.
Nordhaus não é um inovador nas más práticas do pensamento económico. Segue uma longa tradição em que a legitimação da agenda dos mais ricos sobrepõe-se a ideias que contribuem para o bem comum, geralmente baseado em pressupostos neoliberais.
Mas apesar disso, como articulado num artigo pelo economista Heterodoxo Steve Keen, os erros de Nordhaus poderiam ser insignificantes, até comparados com a investigação fraudulenta de Sokai que ligou as vacinas ao autismo nas crianças. Dado o que está em jogo, as consequências são drasticamente maiores.
Tal como noutros casos, a cadeia do mau pensamento económico faz o seu percurso, partindo de ideólogos académicos e chegando aos nossos debates públicos pela mão de políticos como João Cotrim Figueiredo. Outros, como o deputado do LIVRE Rui Tavares, provavelmente pouco cientes do trabalho de Nordhaus, mencionam o seu prémio Nobel em jeito de saudação.
Como noutros assuntos, à semelhança do negacionismo “puro”, o propósito não é uma contribuição para o debate, mas somente o bloquear da discussão e de iniciativas político-económicas que possam resolver os problemas reais. Podemos dar-nos por satisfeitos por desmontar disparates como os de Rita Maria Matias, mas os de João Cotrim de Figueiredo persistem, continuam a ser legitimados. A existência dos primeiros tornam os segundos mais aceitáveis.
Dado a urgência do debate e a irreversibilidade das consequências, os efeitos das ideias de Nordhaus têm-se revelado para lá de catastróficos. Genocidas não será provavelmente um adjetivo desajustado.
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Gostei bastante do texto. Acho que não deviam usar o neoliberalismo neste caso, porque eles tem uma visão própria sobre as alterações climáticas e que difere da que apresentam que é a neoclássica. Se não me engano, pelo Mirovsky, a dos neoliberais e composta por 3 fases e está relacionada com a forma como eles pensam a ciência como um todo. Passa por 3 fases, 1 negar até não poder mais de modo a dar tempo para a 2 fase, aparecer com uma solução que não vai resolver nada mas que serve de discussão, enquanto 3 fase encontra se uma solução vinda do “mercado” (o mercado de carbono pertence a segunda fase, enquanto tecnologias tipo enterrar carbono ou tapar o sol faziam parte da 3)
As mudancas de comportamentos e alteracoes nos padroes de investimento e consumo essencias para que um combate com uma hipotese decente de conseguir combater os piores os efeitos das alteracoes climaticas seja bem sucedido necessita obrigatoriamente de ser articulado com uma distribuicao equitativa dos custos/beneficios de tais mudancas e suporte das camadas mais vulneraveis da sociedade. senao nao ha hipoteses do projecto avancar sem uma revolta popular suicida.
O movimento Gillet-Jaunes de Franca e um exemplo paradigmatico do problema: Um dos slogans do movimento foi algo como: "Voces falam do fim do mundo, mas nos estamos preocupados com o fim do mes." - impor importos sobre produtos petroliferos ou uso de automoveis sem qualquer tipo de apoio paralelo atira largas camadas da populacao para a miseria e/ou escolhas impossiveis porque dependem de estilos de vida poluentes para conseguir sobreviver o dia-a-dia
Os impostos sobre carbono, ou sobre produtos populentes ten de ser acompanhados de uma fortissima componente de redistribuicao das receitas obtidas entre as camadas mais pobres da sociedade que, de resto, serao desproporcionalmente afectadas por estes impostos e ajudas estatais para os ajudar a adoptarem solucoes tecnologicas ou praticas de consumo mais sustentaveis.
Robert Pollin sugere que as receitas deste tipo de impostos sejam usadas 75% em subsidios directos as camadas mais pobres da sociedade e 25% usados para financiar projectos verdes. Ele tem propostas semelhantes na reducao dos subsidios as industrias da enegia fossil - isto e, usar as poupancas resultantes do corte neste subsidios para proporcionar financiamento de projectos verdes mas preponderantemente (75% da poupanca) alocada a ajuda financeira aos mais pobres os quais,. uma vez mais, serao os mais afectados por estes cortes de subsidios a industria fossil. porque muitas das vezes estes subsidios existem na forma de ajudas estatais ao consumo de produtos poluentes de que estas camadas sociais dependem.
A este respeito sugiro vivamente o livro "Climate crisis and the global green new deal" da co-autoria de Noam Chomsky e Robert Pollin
https://www.versobooks.com/en-gb/products/2519-climate-crisis-and-the-global-green-new-deal