Entrevista | “Há uma falta de intelectuais orgânicos à burguesia portuguesa”
Nesta conversa com o historiador económico Ricardo Noronha fomos a temas como a organização política em Portugal, os intelectuais à Direita e as disciplina da História e da Economia
Na primeira parte da conversa que tivemos com o historiador Ricardo Noronha focámo-nos no trabalho deste sobre a nacionalização da banca portuguesa em 1975. Nesta segunda parte, alargamos a conversa para os tempos atuais.
Sem perder de vista o processo revolucionário dos anos 1970. Começamos pela organização atual dos trabalhadores, a construção de espaços políticos, a individualização e fragmentação da sociedade, os intelectuais da direita portuguesa, o caminho que a “hegemonia” política segue. De seguida, conversamos sobre como interagem as disciplinas da Economia e da História em Portugal. Por fim, focamo-nos no trabalho de historiador do Ricardo Noronha, e como este diverge de outras formas de História Económica que têm penetrado no discurso público. Frisando a importância de olhar para a conjuntura de cada momento histórico, figuras como o Alfredo Sousa, marcantes no período revolucionário, são de novo trazidas à mesa.
Algo que é narrado no teu livro como fator importante para a organização dos bancários, ainda durante o Estado Novo, era a pausa do almoço de duas horas, que os permitia a discussão e organização. Partindo deste episódio, podemos interpretar tendências atuais, como o teletrabalho e a sua popularidade nos trabalhadores dos serviços, como entrave à organização de trabalho sindical?
Sim, isso seguramente dificulta. Tudo o que implique concentração de trabalhadores, historicamente, revelou-se mais favorável à organização sindical e a formas de resistência e mobilização coletiva, do que aquilo que os dispersa e pulveriza no espaço. Também certas reestruturações do setor produtivo, tendentes à produção descentralizada e para fora, fazem parte desse processo de desagregação da classe trabalhadora.
O teletrabalho insere-se num panorama mais vasto, construído em cima dessa pulverização espacial da classe trabalhadora, que passa por um processo de individualização, de produção de subjetividades cada vez mais isoladas umas das outras. Não é só o teletrabalho. É o facto das pessoas trabalharem num sítio e viverem no outro, viverem em espaços urbanos cada vez menos amigáveis e propícios ao encontro.
A organização de espaços urbanos no centro de Lisboa é, por exemplo, muito mais favorável ao encontro e à sociedade do que a muitos subúrbios da cidade. Para quem, como eu, viveu e cresceu num espaço suburbano de Lisboa, e depois mudou-se para o centro de Lisboa, isso é muito evidente. A expansão do automóvel, o advento da internet, a disseminação dos computadores pessoais e depois dos telemóveis é, no fundo, um processo cumulativo. São tudo momentos que contribuem mais para essa fragmentação, para essa atomização, para essa alienação da classe trabalhadora.
À medida que toda a sociedade se torna uma fábrica, à escala pelo menos do território metropolitano. Para controlar e gerir esse processo, é necessário ordenar o espaço e a socialidade e o encontro. Não é que tenha havido um programa integrado e sistemático [para esta pulverização]. São as condições, o próprio mercado, quando estendido a cada vez mais áreas da vida humana, que favorece isso. Há também aspetos de decisão e escolha, muitas vezes por ausência. Não há uma política pública de produção de um espaço urbano integrado, de uma malha urbana integrada, de políticas públicas, de acesso à cultura, de construção de sítios de encontro, por aí fora. De uma escola mais participativa, por exemplo, em que os estudantes sejam menos passivos. O Jorge Ramos, costuma falar de uma escola que seja mais da escrita e menos da leitura, mais da expressão e menos da assimilação. No fundo há um contínuo entre tudo isto, que depois se traduz numa enorme dificuldade da mobilização coletiva.
Nós os investigadores, os trabalhadores da ciência, estamos a ter muitas dificuldades em produzir um movimento integrado, porque as próprias condições do nosso trabalho são de atomização. Nós estamos sempre a competir uns com os outros. Há aqui uma tensão permanente. Por um lado, para produzir um certo tipo de ciência, é preciso cooperação, é preciso encontro, discussão, projetos de construção de equipas e tudo mais. Mas, por outro, a precariedade induz-nos constantemente a competir.
Eu creio que esta esfera da cultura mais lata é talvez o nó górdio da questão. Daí, é possível começar a inverter tudo o resto. Claro que também é preciso, materialmente, experiências. Isso do espaço público é absolutamente fundamental. Por exemplo, eu creio que o projeto autárquico da CDU se esgotou muito, que era basicamente dar saneamento básico, alcatroar estradas e garantir habitação para toda a gente, e algum tipo de política cultural. Mas perdeu-se de vista a importância absolutamente fundamental de como o espaço urbano é construído. Não é por acaso que as câmaras da margem sul deixaram de construir de várias maneiras. Os PDMs são o que são.
Também tem coisas positivas, não vou dizer que não. Mas há uma certa dificuldade em conceber um projeto autárquico. O Bloco de Esquerda nunca teve, nem parece que esteja propriamente a caminhar nessa direção. Do Partido Socialista nem vou falar, do Livre também não. Há, à esquerda, muita dificuldade em perceber a centralidade que é a questão do espaço e a configuração do espaço. Os instrumentos, mesmo que modestos, para configurar um certo tipo de espaço urbano, e não outro, podem construir um povo de esquerda. Uma classe trabalhadora, que pense em si própria como uma classe, e não como uma vítima, mas como um sujeito histórico.
As pessoas têm a noção de que são exploradas. O que elas não vêem é uma alternativa, e têm dificuldades a imaginar-se a si próprias como parte de um sujeito coletivo. Porque não está no seu imaginário, nada as direciona para aí. A própria possibilidade de exprimirem-se, de comunicar, de contactar, tudo isto está muito contaminado por práticas de socialização, de formas de representação e imaginários individualizados. - focados no “eu, eu, eu”. Ao ponto vermos o sucesso destes influencers e o gurus de automotivação, que no fundo estão sempre a vender uma mesma mensagem que vai ao encontro de uma perceção que é: em Portugal é impossível enriquecer, prosperar, ter uma vida melhor, só com o trabalho: trabalhando melhor, ser mais competente, mais criativo, etc. O que é possível é sempre sair-te jackpot, de alguma maneira. Pode ser literalmente um jackpot, mas pode ser outro tipo de jackpot, como criar o teu próprio negócio, venderes-te a ti próprio. E isto resulta da perceção de que não é viável um projeto coletivo, que assegure que os rendimentos do trabalho aumentem generalizadamente.Que seja possível ter uma vida material confortável com um emprego. Que não tenha de ser criação da minha própria empresa. Ou eu ser sempre um espetáculo, ser sempre entretenimento.
Por exemplo, a fronteira entre entretenimento, informação, política, cultura, também esbateu-se completamente. Nós temos universidades que procuram criar valor, como é o caso da Universidade de Nova [de Economia], e temos empresas que dão doutoramentos. Isto tudo se descentrou, tudo se perdeu. É estranho ser eu a dizer isto, eu sempre gostei de contaminações e formas de hibridação, mas neste momento as coisas parecem estar completamente fora de controlo. É um processo que ainda não parou o suficiente para se perceber para onde é que isto vai.
Voltando ao Fernando Ulrich [abordado na primeira parte da entrevista], do qual falamos na primeira parte da entrevista, mesmo décadas depois do PREC, ele continua a ser uma voz bem polémica dentro da burguesia portuguesa. Ele, por exemplo, sugeriu que Portugal devia pedir ajuda ao FMI antes de o ter feito, afirmou que o país aguentava mais a austeridade porque os sem-abrigo aguentavam, e mesmo agora as suas declarações em tribunal no caso do BES são bem peculiares.
É justo classificar este ex-banqueiro como um agente burguês, que é capaz de defender os interesses da classe capitalista nacional como um todo em articulação com o Estado e não só os seus interesses individuais? Mal comparado, uma espécie de Mario Draghi lusitano.
Não, acho que não. Acho que ele às vezes ambiciona fazer isso, mas acho que não tem as qualidades necessárias. O Mario Draghi, que é um intelectual em pleno. Por exemplo, o Ulrich está longe de ser um intelectual em pleno, nada que se pareça.
Eu creio que os projetos hegemónicos mais fortes neste momento vêm do sector do retalho, o que é bizarro, mas diz-nos alguma coisa sobre a situação na sociedade portuguesa. É a Sonae, que tem o jornal de referência para a esquerda portuguesa, bizarramente; e o Grupo Jerónimo Martins, com a sua fundação. São esses dois setores que disputam realmente a luta das ideias. Disputam e ganham de uma maneira geral.
Isto para as ideias fortes. Num segundo plano, temos esses veículos onde o entretenimento, a informação, a cultura e a política estão dominados pelas televisões, com os dois grandes canais de televisão, a SIC e a TVI. O Grupo Impressa [donos da SIC] é difícil de perceber, porque eles são cronicamente deficitários, mas estão sempre com mais dinheiro para empatar, portanto alguém está ali a por dinheiro. Eles são também o veículo de outra coisa qualquer. De quem não sei, eu teria que estudar um pouco melhor.
A TVI é, desde sempre, dos setores mais reacionários. No fundo, toda a gente que tem interesse em salários baixos e o imobiliário alto, meteu o seu dinheiro na TVI e no Correio da Manhã.
Eu creio que o Fernando Ulrich aqui é apenas mais uma voz que às vezes surge nesta cacofonia. Quer dizer, não chega a ser cacofonia porque dizemos todos mais ou menos o mesmo, que é sempre: no futuro podemos vir todos a ser muito prósperos e felizes e Portugal ser um grande país desenvolvido, se no presente dermos mais condições para um curto grupo de pessoas enriquecer muito. Este é o programa.
Pois isto é preciso edulcorar de várias maneiras - setor a setor - mas é sempre isto. É preciso privatizar a saúde, é preciso privatizar a educação. Estes setores têm de enriquecer ainda mais. Não mexer no imobiliário. Não mexer no turismo, a não ser para permitir trazer mais imigrantes e mais construção. Mas não é claro se querem realmente mais ou se serve basicamente como a válvula para esvaziar o discurso que exige a regulação.
Eu acho que há uma certa falta de intelectuais orgânicos à burguesia portuguesa que sejam mais sólidos. E é por isso que de vez em quando ainda há certas surpresas desagradáveis como a geringonça. Apesar de ter tido muitas limitações, ainda assim, o ódio foi projetado contra aquilo durante os primeiros anos. Depois foi-se normalizando até porque o PS a certa altura começou a dar garantias de que não iria mais longe. Mas o próprio facto de durante dois ou três anos [a geringonça] ter sido um objeto de todos os ódios consertado neste setor absolutamente hegemónico poderoso, diz-nos alguma coisa.
Por exemplo, uma figura como José Pacheco Pereira é um bom sinal de onde é que a hegemonia está. A dada altura a voz dele começou a destoar, ali a meio da troika. Ele tinha-se batido, no seu combate anti-Sócrates, para que este fosse sucedido por algo tipo Pedro Passos Coelho. Primeiro era a Manuela Ferreira Leite, mas depois foi o Pedro Passos Coelho. Ele percebeu que aquilo não ia correr bem, e depois passou a destoar até hoje. E é uma voz que lhes falta, porque é um tipo de pessoa que conhece suficientemente bem os argumentos da esquerda para os refutar. Eu acho que eles já não têm muita gente assim. Por isso é que depois aparecem estes epifenómenos como é o Sebastião Bugalho ou aquele deputado do PS que está à direita do PSD, o Sérgio Sousa Pinto.
Nas presidenciais aparece este Almirante vindo do fundo do mar [Henrique Gouveia e Melo] para disputar a coisa. Continuam a aparecer aqui uns jóqueres, mas eles acabam por ser todos absorvíveis. Claramente são indícios de que não há um projeto suficientemente consistente, um bloco histórico suficientemente coeso e estrategicamente alinhado, para que haja um Draghi. Alguém que seja capaz de ser um porta-voz do interesse coletivo, não apenas do grande capital – que em Portugal sabemos que são setores absolutamente parasitários – mas do capital enquanto relação ao social. Ou seja, setores como a Semapa, ou a Renova, que apesar de tudo sabem que o país tem que ser minimamente viável, que é preciso ter umas empresas que funcionem realmente.
Os gestores que têm aparecido aí – como o António Mexia [antigo gestor da EDP] – têm tentado fazer esse papel. O Ulrich acaba por ser fazer parte dessa galeria. Mas faltam-lhes muito, falta-lhes cultura, falta-lhes sofisticação política. Eles são administradores e portanto sabem administrar - setores que basicamente também têm pouca concorrência, não são propriamente grandes capitães de indústria. São o possível à escala portuguesa.
Os Azevedos [grupo Sonae]. O filho do Alexandre Soares dos Santos [grupo Jerónimo Martins], a resposta dele a qualquer crítica é sempre “quantos postos é que vocês criaram?”. Herdeiros, como a Paula Amorim, ou o próprio Paulo Azevedo, dizem-nos sempre que herdaram mas são capazes, porque se não fossem, não teriam herdado. E todos sabemos que isso é mentira.
Ninguém que seja realmente competente aceita trabalhar na empresa do pai. E isto é ponto final, parágrafo. Todas estas pessoas foram trabalhar para a empresa dos paizinhos, portanto não vale a pena tentarem convencer-nos do contrário. Esta estrutura clânica do setor empresarial português diz-nos qualquer coisa sobre as suas debilidades. Depois é difícil a partir desse meio emergir um intelectual orgânico relativamente consistente.
Pessoas que estariam em condições para fazer isso seriam, por exemplo, pessoas com um perfil mais tecnocrático, seria o Mário Centeno, seria mais por aí, alguém das universidades. O Vítor Constâncio em tempos, mas acho que esse já não está virado para este tipo de coisas. Mesmo este ministro da Economia, é uma pessoa com dificuldades de expressão, não é convincente. Eu sinto que ele tem um maço de notas e que está a mexer em dinheiro quando se está a falar. Parece esse tipo de pessoa, não sei, mas se calhar é um bocado também preconceito de classe.
No fundo o que temos é uma malta extremamente medíocre, do ponto de vista das suas capacidades reais e inerentes. Ao nível da tecnocracia não está a emergir ninguém com mundo e capacidade suficientes. O pessoal político é cada vez pior. Uma pessoa olha para o Luís Montenegro a falar, e a diferença para o António Costa é absolutamente abissal. Antes disso já tinha sido o Pedro Passos Coelho, que a direita tentou criar essa imagem, que é um gajo que passou a sua juventude a jogar as cartas e, toda a gente sabe disto, e acabou o curso com 40 anos. Como é que uma pessoa assim pode de repente ser um exemplo do esforço do trabalho árduo? Desse tipo de qualidades que, apesar de tudo, são características de uma burguesia empreendedora. Não existe, e é nesta ausência que aparecem todas as características de uma “burguesia compradora” do ponto de vista intelectual, como vocês já vieram assinalar.
E aqui é difícil distinguir o que é causa e efeito. A economia portuguesa tem este perfil, é difícil aparecer alguém realmente competente que traça outro tipo de projeto. E como ninguém traça outro tipo de projeto, ficamos aqui neste ciclo vicioso.
Quem é que vai desbloquear isto? É o Chega. Ostensivamente. Não é uma questão de se, é uma questão de quando. Mais cedo ou mais tarde, o André Ventura vai estar no governo, e não sei se vai estar a liderar o governo. O gajo consegue sobreviver a tudo, até a pedofilia, já se percebeu. A TVI imediatamente convidou-o para ir lá esclarecer tudo em 10 minutos e a Sandra Felgueiras foi extremamente compreensiva. Nós notamos o grau da agressividade dos entrevistadores contra qualquer pessoa de esquerda neste país, por questões muito menos sensíveis do que ter pago 20 euros para usufruir de sexo oral num pinhal como um adolescente de 15 anos, e depois vemos a facilidade como uma coisa destas passou.
Eu creio que vai ser aí que a coisa vai ser desbloqueada, para o bem e para o mal. Para o mal, no imediato, com a extrema direita no governo, se é que não vai ser um governo de extrema direita como aconteceu em Itália. Vamos ver se a resposta a isso nos permite reconstruir qualquer coisa. Mas eu creio que a esquerda, tal como existe neste momento, não serve. Para mim é absolutamente claro que nem o Bloco de Esquerda nem o PCP, e sendo muito generoso, nem o Livre, nem o Partido Socialista estão em condições de romper com este quadro. Portanto, parece que é mesmo uma questão de quando. Vamos ver se vai ser uma espécie de guerra civil parlamentar, enquanto houver parlamento. As pessoas habituaram-se a pensar que há coisas que são irreversíveis, que já não voltaremos atrás. Mas não é voltar atrás, é outra coisa, mas já não é esta coisa.
Em Itália eu estava à espera que tivesse sido mais do que foi. A Giorgia Meloni, apesar de tudo, manteve-se muito moderada face ao que estava a pensar, mas eu creio que as coisas neste momento se caminham a passos largos para a extrema direita um pouco por todo o lado. Vamos ver se essa extrema direita um pouco por todo o lado não é o fim dos regimes parlamentares democráticos, tal como os conhecemos. Aqui há muita margem de manobra - um cenário atrás do qual tudo o que é democrático é esvaziado, mas mantém-se a encenação.
Sentes que o teu trabalho em específico, a história económica em geral, acolhe o interesse dos economistas portugueses.
Não, ou melhor, acho que no campo da economia política, que é o campo dos economistas heterodoxos sim. Participo em sessões de economia política, vou às conferências, há economistas que vêm assistir às comunicações que eu faço e que outros colegas meus fazem. Aqui também há um divórcio que é mútuo. Há poucos historiadores económicos a irem a estas conferências. Há poucos historiadores económicos em geral.
A história económica está muito dominada por pessoas vindas das licenciaturas em economia e que trazem dali basicamente a economia neoclássica e econometria. Há uns casos mais exóticos, como o do Nuno Palma, mas na verdade há pessoas que fazem bons trabalhos nesse campo. É preciso um diálogo com essas pessoas. Eu gosto do trabalho do Luciano Amaral. Discordo de muitas coisas, discordo de muitas interpretações, acho que alguns daqueles métodos não permitem chegar a certas conclusões, mas acho aquilo de uma maneira geral é interessante e sólido. É possível discutir com o Jaime Reis, em tempos o Pedro Lains.
Mas eu acho que o campo da história económica em geral não está propriamente a prosperar. Há alguma história empresarial, que é muito biográfica, é basicamente elogios a um patrão ou a uma família de patrões. Há uma história de políticas públicas - , desigual, umas coisas melhores, outras piores - Basicamente o que foi a política económica de cada governo, em cada período, em cada regime.
Depois há esta história quantitativa que mede o crescimento em cada período e tenta explicar os altos e baixos, o que penso não estar a ser injusto. O que eu estou a tentar fazer é uma coisa muito diferente.
Voltando à pergunta, malta da economia política sim, há algumas pessoas tão interessadas. O Ricardo Paes Mamede, o João Rodrigues, o Alexandre Abreu, a Ana Costa da Associação de Economia Política. Eu sou membro da direção [da Associação de Economia Política], o que mostra que tem havido a preocupação de ter pessoas de outras ciências sociais e das humanidades.
Mas eu acho que o campo da economia e da opinião económica (que vão à televisão ou escrevem nos jornais sobre economia) em Portugal, globalmente falando, encontraram no Nuno Palma o historiador económico que lhes convinha.
Mesmo o Luciano Amaral, esperava-se que o trabalho dele tivesse mais tração do que tem. Já teve mais. Talvez por ele ser um historiador de formação, ser mais cauteloso com algumas das suas afirmações, no fundo o que eu sinto é que os economistas em Portugal como uma posição hegemónica estão interessados numa história económica que seja muito simplificada. Que eles percebam logo, que lhes permita tirar conclusões imediatas, e que essas conclusões vão ao encontro dos seus objetivos. O que eles não querem é uma coisa que diga “sim, mas”, e sobretudo não querem uma coisa que diga ”não, nem pensem que é isso porque não é isso”. Não querem diálogo, não querem debate, porque isso implicaria também que a sua própria disciplina fosse posta em questão. Há muitos pressupostos e certezas em que eles se ancoram que seriam postos em questão.
Mesmo uma economista como a Susana Peralta, que eu conheço há muitos anos e que estimo, gosto muito dela, mas ela não consegue perceber o que eu digo. Mesmo com boa vontade, eu sinto que ela está a tentar perceber, mas ela não percebe os meus argumentos. Para que é que isto serve? Para ela, há coisas que são auto-evidentes e que não vale a pena sequer começar a discutir. Se há excesso de procura de certos bens é preciso aumentar os preços, ponto final. Se os preços estão a aumentar é um porque há demasiado emprego, demasiada procura e ponto final. É preciso haver ajustes e tudo mais. No fundo, qualquer política de redução das desigualdades sociais, que eu acho que ela tem essa preocupação, é uma política que fica para corrigir falhas do mercado. É uma política que não perturba o funcionamento do mercado. O mercado imaginário, na cabeça destas pessoas, em que nós somos agentes económicos dotados do mesmo tipo de condições, em que a distribuição de conhecimento é perfeita, em que todos nós temos qualquer coisa a dar e qualquer coisa a receber, e por aí fora.
Se tu imaginas o mundo e a sociedade à luz desta estrutura, alguém que tenha um argumento historiográfico - que diga em tempos isto não era assim, que se calhar nunca foi assim, ou não é assim agora - cria um tipo de incerteza que os preocupa. Também porque a economia enquanto disciplina procurou cada vez mais emular, desde o século XIX, a física para se dotar a si própria do tipo de legitimidade científica e da autoridade do argumento científico para precisamente não ser possível discutir os seus pressupostos e as suas conclusões. O economista quer poder falar com plena autoridade sobre quais são os mecanismos de causa e efeito, o que é que produz o quê. O que eu acho que a história económica deve fazer é examinar essa reivindicação, esse pressuposto, que os mecanismos de causa e efeito são esses. Olhar para a história como um conjunto de exemplos. Quando isto tem sempre sido assim, quando é que não foi assim, porque é que não foi assim etc. Como é que os mercados são historicamente instituídos. Isso é o tipo de coisa que a opinião económica não está muito interessada em saber.
O teu trabalho foca-se num olhar bastante detalhado de determinados períodos históricos, analisa não só o que ocorreu como também aquilo que foi debatido e não saiu no papel. Isto é diferente da “nova história económica”, representada por figuras como Pedro Lains, como Nuno Palma, que se foca em grande medida na quantificação que já falaste há pouco, de performance económica ao longo do tempo e explicar porque é que as coisas aconteceram. Quais é que são as tuas principais divergências e críticas a toda esta abordagem?
Bom, em primeiro lugar eu acho que há interesse na quantificação, não é por aí que nós divergimos. Mas eu creio que quando nós não temos os dados suficientes para construir uma visão panorâmica daquilo que é que o Produto Interno Bruto (PIB) de um determinado período, por exemplo, e procuramos através de uma série de operações e cálculos rocambolescos (com extrapolações, regressões, etc) estimar o que é que esse PIB poderá ter sido, parece-me uma sugestão que também não é completamente desinteressante. Mas depois, falar desse PIB como se só soubéssemos exatamente que aquilo é que foi o PIB do século XVIII, por exemplo, quando não havia uma administração fiscal minimamente eficiente, não é possível utilizar um conjunto de variáveis para alongar aí as nossas reflexões e as nossas interpretações.
Quando o fazemos, temos de ser extremamente cautelosos. E eu creio que, precisamente porque a disciplina, muito empurrada pelo paradigma da economia, tem necessidade de pensar a si como produtor de uma série de certezas, de afirmações absolutamente assertivas sobre a realidade, senão não seria uma ciência, acaba por eliminar toda esta complexidade do seu objeto.
Eu creio que para estudarmos o passado económico, em primeiro lugar, temos de ser capazes de nos colocar no ponto de vista e na perspetiva dos agentes e dos sujeitos históricos que estavam a viver naquele período. Perceber quais é que eram as condições de possibilidade que se lhes colocavam em termos de ação.
Que tipo de política eles achavam que era possível e quais é que não. Depois podemos pensar se eles estariam a entender certas coisas. Devemos comparar, seguramente, país contra país, zonas, regiões. Perceber as ideias e ter uma concepção densa da cultura. A cultura como conjunto de representações dos imaginários, das formas de cálculo, das formas de representação simbólica, como é que o real é entendido e tudo mais. E só à luz disso é que os dados quantitativos de que dispomos, que devem ser recolhidos laboriosamente em arquivos, devem ser trabalhados. Não para projetar para o passado o mesmo tipo de mecanismos intemporais que nós consideramos serem constitutivos de qualquer economia, mas de compreender o passado nos seus termos específicos.
Devemos também ser capazes de fazer a genealogia de certas formas históricas: o mercado, o Estado, como é que elas interagem historicamente, como é que se materializam. Nós, muitas vezes, usamos esta figura que é o Estado. O que é que é o Estado em cada momento? No território? No comportamento de diferentes grupos sociais? Em diferentes zonas? Que tipo de instrumentos é que tem? O que é que representa? Que tipo de conhecimento é que produz sobre a sociedade que está a governar? Quais são as formas de cálculo político? Onde é que se traça a distinção entre o Estado e a sociedade? Onde é que se traça a distinção entre o Estado e da economia? De onde é que uma coisa chamada “a economia” emerge? Enquanto conjunto, com as suas leis próprias, o seu procedimento próprio, que é possível de ser compreendido a partir de uma disciplina. Sem fazer essa genealogia, a génese, a evolução, a transformação histórica dos diferentes fenómenos, nós não temos propriamente uma história. O que nós temos é sempre pegar um conjunto de pressupostos de axiomas e de teorias, formulados algures entre o século XIX e hoje, que projetarmos para o passado, ilidindo, obscurecendo a densidade específica de cada período histórico.
Isto é um pouco o argumento da escola histórica alemã. A grande polémica, entre o Carl Menger, pela escola austríaca, e o Gustav von Schmoller, pela Escola Histórica Alemã, é se cada período histórico tem a sua configuração própria e, portanto, deve ser examinado. Deve-se, antes de mais nada, compreender essa configuração. Na escola histórica alemã, a questão era apresentada em termos de leis, leis históricas. O Menger dizia que não, há um conjunto de normas que são intemporais. Há fatores: capital, trabalho, propriedade, terra. Nós temos é que, em cada momento, perceber como é que eles estavam articulados.
Às vezes, as pessoas não percebem que nem todos os sujeitos históricos ao longo da história tiveram esse tipo de racionalidade, de maximização do benefício, de pensarem-se próprios como indivíduos. Na verdade, ao longo da história, isso é uma construção relativamente recente e não é sequer certo que, no século XX, as coisas tenham passado a ser assim, tal como certas pessoas argumentam.
Mas é quase certo que, antes disso, as pessoas não pensavam nesses termos. O Adam Smith não pensava nesses termos. O David Ricardo não pensava nesses termos. O Stuart Mill não pensava nesses termos. É possível fazer a história de quando é que a da altura começou a emergir esse argumento, e era um contexto histórico muito específico, um certo tipo de modernidade, um certo tipo de sociedade em zonas específicas do globo, um certo tipo de aparato intelectual, associado a um certo tipo de interesses.
Quando nós colocamos isso tudo em cima da mesa, creio que temos uma visão mais rica da história económica, e não só. Eu acho que a própria distinção entre história económica, história social, história cultural, história política, deve, em cada momento, ser considerada uma convenção que se pode transgredir.
Por exemplo, o Alfredo da Silva, era um homem dotado de uma cultura própria, um conjunto de representações, de preferências, que nem sempre eram ditadas pela simples racionalidade económica, tal como a disciplina concebe. Ele despedia pessoas, principalmente porque o irritavam, porque falavam de uma maneira que ele não gostava. Há relatos de que ele discutia com o José Ferreira Dias, que foi ministro durante o Estado Novo, um grande intelectual da industrialização portuguesa. Ele odiava o Ferreira Dias e o Ferreira Dias odiava-o ele. Ele despediu-o por causa disso e não porque fosse um engenheiro pouco competente, porque tinha outro melhor, que ia maximizar, ser mais produtivo, etc. Não, despediu porque não gostava da forma insolente como ele falava. Os sujeitos históricos têm esta aspereza. São pessoas reais, concretas, que têm preferências que não sempre são ditadas por coisas tão importantes como maximizar.
É preciso compreender as coisas nestes termos. O banqueiro que ia caçar com o Salazar, ou almoçar com ele todos os dias. Isso faz parte da história, não apenas o balanço anual do Banco Espírito Santo, mas esse tipo de condições, considerações. “O senhor presidente do Conselho quer muito que nós investamos nesta empresa, portanto nós vamos investir. Por outro lado, nós queremos muito investir nos petróleos e o senhor Presidente do Conselho deferirá porque sou um homem da confiança dele”. Este tipo de mecanismos são, de uma maneira geral, ausentes da nova história económica. Ou quando estão, são uma espécie de adição.
Por outro lado, eu tenho encontrado cada vez mais um trabalho de história económica em que depois de vários cálculos, vários dados estatísticos, regressões, correlações e tudo mais, a pessoa diz: bom, mas nada disto de facto permite concluir o que provavelmente se dá, portanto foi um fator cultural. E eu não acho mal disso, mas então os historiadores económicos devam investir um pouco mais na explicação do que é isso da cultura, como é que isso funciona. Ora, estas pessoas acham que não. A História Económica é isto que nós acabamos de fazer, e este fator cultural é uma espécie de Deus Ex Machina que aparece aqui. Sempre que nós não conseguimos explicar alguma coisa, invocamos aquilo que nós não compreendemos (que é a cultura), e dizemos provavelmente que é um fator cultural. Isso é má história. É má ciência. É um conhecimento que não nos serve nada, não nos dá nada. Não nos permite compreender melhor nem o passado nem o presente.
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