A popularidade do governo mexicano é demasiado alta para ser ignorada pela esquerda
O sucesso de López Obrador e Claudia Sheinbaum mostra que a esquerda não pode abandonar a disputa da eficiência de Estado
Nos seus primeiros anos de existência, a Iniciativa Liberal (IL) desdobrava-se em exemplos internacionais para mostrar que o “liberalismo funciona e faz falta a Portugal”. O sistema de saúde alemão; os impostos e burocracia da Estónia; o IRC da Irlanda e dos Países Baixos, por aí em diante. Olhando para os resultados eleitorais até à data, a estratégia pode ser vista como um sucesso: o partido foi crescendo, normalizou o termo “liberal” e conseguiu distanciar-se da má reputação de políticas como o sistema de saúde dos Estados Unidos da América e o “ir além da Troika” da dupla Pedro Passos Coelho e Paulo Portas.
Nos últimos tempos a narrativa da IL foi perdendo fôlego. Em 2022, o choque fiscal de Liz Truss no Reino Unido foi um completo desastre, levando os liberais bizarramente, a associá-la a José Sócrates; na Irlanda país historicamente dominado pela direita, o Sinn Féin (esquerda radical e braço eleitoral do IRA) espreita ser o partido mais votado; e a impopularidade do antigo ministro das finanças alemão – outrora referência dos liberais lusos – fez com que os liberais desaparecessem do Bundestag.
Para piorar a situação, a estrela do crescimento europeu passou a ser a “Espanha socialista”, a profecia de que Portugal seria ultrapassado pela Roménia em PIB per capita em 2024 falhou (Portugal acabou mesmo por “passar” a Estónia) e a TAP passou a dar lucros. Os paraísos liberais europeus deixaram de existir e deixaram um vazio na narrativa.

O esgotamento da estratégia é tal, que no debate da semana passada, entre Rui Rocha e Mariana Mortágua, tivemos uma inversão de papeis: o líder dos liberais denunciava o falhanços na Irlanda e nos Países Baixos, enquanto a coordenadora do Bloco de Esquerda elogiava as políticas habitacionais da Alemãs e Neerlandesas.
Os liberais precisavam de um novo exemplo internacional, e encontraram dois candidatos do outro lado do Atlântico: Elon Musk (mostrando um distanciamento face a Donald Trump) e Javier Milei.
Em Novembro de 2024, ainda antes de Trump tomar posse, Rui Rocha já falava em replicar o DOGE (Departamento de Eficiência Governamental) de Elon Musk. No mês seguinte, o líder da IL tentava ter um pé dentro e outro fora do projecto Milei ao falar em “pontos de contacto”, enquanto alertava para o facto de que “políticas adoptadas na Argentina não são transponíveis para Portugal”. Por essa altura, Pedro Santa Clara, intelectual da órbita do partido, recomendava um artigo do Instituto Mais Liberdade sobre Milei e elogiava a sua ousadia liberalizante.
Após uma hesitação inicial, o partido parecia oficializar a sua admiração para com Milei durante uma convenção nacional. Bernardo Blanco passava a incluir o “afuera” de Milei no seu linguajar político, um claro movimento de acomodação a uma das listas derrotadas.

Nas eleições legislativas de 2024, depois de uma década caracterizada pela austeridade, pelas cativações, e os excedentes orçamentais pela mão do PS, Rui Rocha tentou ressuscitar o discurso de Passos Coelho e Portas, com a proposta de redução da despesa do Estado em 3,5 mil milhões de Euros. Quando questionado como o faria, a coisa mais próxima de uma resposta foi a austeridade nas fotocópias e canetas dos escritórios do Estado. Nesta eleição, Rui Rocha volta ao tema, falando genericamente numa “racionalização do Estado” e sugerindo a contratação de um funcionário público para cada dois que saem da administração pública.
Apesar dos embaraços que Musk e Milei têm criado a Rui Rocha nos debates eleitorais ["A Argentina está do outro lado do mar, nós estamos do lado da Europa"], o líder da IL espera que estes respondam a uma pergunta para a qual ele não tem resposta.
Este carrossel intelectual da IL abre duas importantes questões para a esquerda. Primeiro, visto que a ideia de gorduras do Estado teima em não morrer, existe à esquerda, que defende serviços públicos, espaço para este discurso? A segunda questão remete para os exemplos internacionais, que os liberais invocam de forma leviana. Existe algum projeto político contemporâneo que a esquerda deva olhar com atenção, evitando cair numa versão de esquerda da estratégia da IL - uma lista superficial de políticas avulsas de vários países, sem coerência entre si, que funciona até um certo dia?
Para responder a ambas as questões em simultâneo, devemos olhar para outro projeto da América Latina, bem distinto do de Milei.
LA AUSTERIDAD REPUBLICANA
No mundo caracterizado pelas derrotas eleitorais de quem está no poder e por uma viragem à direita, o México tornou-se demasiado excepcional para ser ignorado. Em 2018, Andrés Manuel López Obrador (AMLO) ganhava as eleições presidenciais na primeira volta com o MORENA, um partido com menos de uma década. Seis anos depois, AMLO saía do cargo com mais de 70% de taxa de aprovação e Claudia Sheinbaum, sua sucessora, via o projeto político do MORENA reforçado nas urnas, com uma vitória presidencial esmagadora (60% na primeira volta).
O mandato de AMLO incluiu políticas tradicionais da esquerda, num projeto apelidado de Quarta Transformação, que inclui o aumento significativo do salário mínimo, a expansão dos direitos sindicais, as transferências sociais e investimentos públicos em infraestruturas. Mas surgiram outras especificidades, facilmente apelidadas aos olhos do progressismo europeu de populistas, ou mesmo retórica de direita. Entre estas, a “Austeridade Republicana” é sem sombra de dúvidas a ideia mais infame.
Desde o início do seu mandato, a agenda progressista de AMLO foi sempre executada num contexto que em Portugal chamaríamos de “contas certas”, recebendo mesmo críticas do FMI durante a pandemia por gastar pouco. O trauma coletivo das crises de dívida externa das décadas de 1980 e 1990 parece ter moldado o pensamento do presidente, que considera que não existe soberania com endividamento externo crescente. Para complicar a situação, aumentos de impostos também foram descartados durante a campanha eleitoral. A gestão económica seria feita através do combate da corrupção (segundo AMLO, uma característica inerente do neoliberalismo), tudo sob o selo da sua austeridade republicana. Para sintetizar esta prática, Edwin Ackerman resgatou uma carta de AMLO para o setor empresarial ainda durante a campanha eleitoral de 2018:
“Acreditamos que sem corrupção e com um governo austero, podemos tirar o México da crise económica, da agitação, da pobreza e da espiral de insegurança e violência que este sofre atualmente. Para conseguir isso, não serão necessários aumentos de impostos ou dívida do Estado; honestidade no governo e redução de custos administrativos serão suficientes para aumentar o investimento público e usá-lo como alavanca para projetos produtivos envolvendo participação do setor privado e social.”
A austeridade republicana é um antecedente (muito diferente) da motoserra de Milei e do DOGE de Musk, e cumpre pelo menos três funções. Uma, de carácter mais simbólico, é de colocar a presidência num pedestal moral e ético, que pode ser vista em atos como o corte do salário presidencial em 60% (a sua primeira medida), a venda do jato presidencial, complementada com conferências de imprensa diárias (mañaneras) que alimentam a imagem de um presidente comprometido com o seu povo. Como sinal da eficácia desta estratégia, a popularidade do presidente sempre foi superior à do governo (também alta). Uma segunda função da austeridade republicana é a poupança orçamental, numa combinação de cativações e uma cobrança muito mais rigorosa de impostos a empresas multinacionais. Por último, e com muito maior profundidade política, a presidência usou a austeridade republicana para fazer uma disputa aberta sobre quem tem o controlo do Estado, que é evidente em políticas como a redução dos salários das classes mais altas do funcionalismo público, e reestruturação por completo da rede de programas sociais.

O governo do MORENA é abertamente cético quanto à burocracia de Estado que herdou, resultado de décadas de governos dos oponentes do PRI. Tornou-se claro o objetivo de discipliná-la e subordina-la ao seu programa político. Como descrito num artigo crítico da revista The Economist “os seus projetos de estimação não estão a sentir a pressão [orçamental] presidencial” e “López Obrador usou a sua estranha mistura de generosidade e avareza para fortalecer instituições que gosta e enfraquecer aquelas que não gosta”. No caso da PEMEX (empresa estatal de petróleo), importante instrumento de política económica, a austeridade republicana foi sendo uma forma de afastar os cartéis de combustíveis de dentro da empresa. O que AMLO mostra é uma “motoserra progressista” nunca será uma retração do Estado mas um recentramento dos grupos que beneficiam deste.
AMLO manteve-se popular ao longo de todo o seu mandato, mas esta disputa do Estado é visível pela recomposição da sua base de apoio enquanto governou, que se deslocou da “classe média” para as “classes trabalhadoras”. Segundo Ackerman, o seu modo de governar retirou importância ao credencialismo e à tecnocracia, afastando esses grupos da sua base social.
Apesar de AMLO se mostrar como uma personalidade peculiarmente franciscana, a sua sucessora, Sheinbaum assegura que a austeridade republicana é para continuar. O sucesso da fórmula reflete-se na vitória fácil que Sheinbaum teve em 2024 para chegar à presidência e nas constantes taxas de aprovação acima dos 75%. Nestes seis anos de governo, a confiança no governo e nas eleições aumentou substancialmente.
Os feitos do governo não se resumem à austeridade republicana. Devem-se essencialmente a um amplo programa político que levou à melhoria das condições de vida das classes populares mexicanas. Ainda assim devemos tentar entender o papel específico de todas as suas particularidades. Em vez de considerá-las extravagâncias latinoamericanas, devemos procurar lições políticas do conjunto de toda a sua atuação política, em vez de nos focarmos apenas nas escolhas aprazíveis à primeira vista.
A URGÊNCIA DE REDIRECCIONAR E REMORALIZAR O ESTADO
Da mesma forma que Rui Rocha afirma que as “políticas adoptadas na Argentina não são transponíveis para Portugal”, há espaço para aprender com o modelo de austeridade republicana do México sem fazer deste uma réplica. Com contextos políticos e históricos diferentes, ao contrário do partido de AMLO e Sheinbaum, a esquerda portuguesa não olha para o Estado Social, filho da Revolução de Abril, como um instrumento desenhado pelo seus inimigos históricos.
Ainda assim, a pergunta que se levanta é a de ser possível criar uma agenda progressista que cumpra os objetivos da austeridade republicana mexicana. Em Portugal, o embate dos Contratos de Associação - entre o primeiro governo de António Costa, e os colégios privados - tem contornos de austeridade republicana e ajudou o governo a manter-se popular num período em que tinha pouca margem orçamental. Até mesmo o governo de Keir Starmer, austeritário e pouco inspirador para esquerda, sinaliza querer reduzir o papel das consultoras externas no Estado Britânico.
Numa introdução ao seu novo livro (ao qual dedicaremos um outro texto) e reflexão após a derrota eleitoral do Partido Democrata, Ezra Klein argumentava que os eleitores dos Estudos Unidos ficaram condenados a escolher entre quem quer destruir o Estado (Republicanos) e quem defende de forma acrítica toda a sua ação (Democratas). Casos como este mostram que a esquerda não pode ficar limitada a uma posição de defesa do Estado. Num contexto descontentamento generalizado, respondendo a todos os problemas deste apenas com reivindicações de “mais investimento” e “valorização de carreiras” não tem sido uma fórmula credível e eficaz, em parte porque opta ativamente por evitar confrontos.
Se o simbolismo da austeridade republicana e outras medidas com a mesma gênese cumpre apenas o papel de ganhar tempo, essa já seria uma lição suficientemente importante. Capacitar o Estado e reverter décadas de reformas liberalizantes leva tempo e é um caminho para o qual não se conhecem todas as respostas à partida. AMLO entende que a popularidade e viabilidade de um projecto político depende simultaneamente do alívio imediato das condições da população e da crença que um algo melhor está a ser construído.
Sem uma estratégia que ganhe tempo para comunicar um longo caminho coletivo a ser percorrido, a esquerda vai ficando encurralada entre a celebração de vitórias eleitorais pontuais cuja popularidade evapora-se rapidamente (aqui ou aqui) e desperdiçar conjunturas favoráveis ao meramente distribuir folgas orçamentais sem uma mudança transformadora no horizonte (Costismo).
AS ÚLTIMAS SEMANAS NOS PIJAMAS
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
Se gostaste do que leste, apoia-nos. É simples e não te vai custar um cêntimo: subscreve e partilha a nossa newsletter e os nossos artigos. Esse é o maior apoio que nos podes dar.