A Ordem do Capital: A Tecnocracia é um projecto de classe
A obra é fundamental para entender a atual austeridade não como uma falha técnica mas como um projeto politico de sucesso do capital
O NOSSO CICLO DE ABRIL
Hoje, a República dos Pijamas inicia uma série de textos focados nos 50 anos da Revolução de Abril. Por isso, nas próximas semanas irás receber textos com mais frequência do que é o habitual. O objetivo desta série não é relembrar as conquistas de abril, mas usar o passado como um veículo de reflexão sobre o presente e futuro. As “reformas estruturais”, quer aquelas que a direita quer fazer para apagar o legado da revolução, quer aquelas que a esquerda deve fazer para o revitalizar são o centro desta série.
Iniciamos com um ensaio em torno do livro A Ordem do Capital, de Clara Mattei. Na primeira parte do ensaio, faremos a síntese da obra; na segunda parte refletimos o papel do a compreender a revolução e acontecimentos mais recentes na economia e política.
A ORDEM DO CAPITAL
Em setembro de 2023, Tim Gurner – um dos homens mais ricos da Austrália – defendia que o desemprego tinha de aumentar substancialmente para disciplinar os trabalhadores, que se tinham tornado demasiado arrogantes no pós-pandemia. Com um historial de opiniões igualmente reacionárias – um dos famosos defensores da teoria que os jovens não conseguem comprar casa por causa do consumo abusivo de tostas de abacate – Gurner viu-se forçado a pedir desculpas pelas suas declarações para conter danos mediáticos.
Apesar do desabafo público do milionário ter sido apresentado como uma mera opinião individual e desinformada, a história mostra-nos que este tipo de reação por parte dos mais poderosos é frequente. Recordar esta dinâmica é um dos principais contributos de “A Ordem do Capital” (Temas e Debates), livro de estreia de Clara Mattei, economista italiana e professora da The New School (Nova Iorque), publicado em 2022.
A obra de Mattei foca-se na análise da evolução política e económica de Itália e do Reino Unido no período entre guerras mundiais, essencialmente no prisma da luta de classes. Ao longo de mais de 300 páginas, e dividida em duas partes, A Ordem do Capital oferece uma análise que contradiz o simplismo do imaginário coletivo, em que os únicos acontecimentos de relevância para o surgimento do fascismos são as indemnizações de guerra impostas à Alemanha e o crash da bolsa norte-americana em 1929. Mattei coincide com Adam Tooze em Deluge, onde a análise do pós Primeira Guerra Mundial também assenta no desafio à tese sobre a inevitabilidade do fascismo devido às compensações impostas à Alemanha no pós-guerra.
Na primeira parte da obra, a economista-política italiana aborda as profundas transformações económicas e sociais entre o pré e pós Primeira Guerra Mundial, e os seus principais agentes de mudança. Este curto período de tempo é marcado por grandes conquistas políticas para as classes populares. Por fim, na segunda parte, Mattei foca-se no papel da combinação entre austeridade e tecnocracia na reversão destas conquistas, através da criação de mecanismos de disciplina para os trabalhadores (como Gurner almeja hoje), o que no caso italiano resultou na ascensão do fascismo, pela liderança de Benito Mussolini.
Apesar das diferenças óbvias entre os países analisados - Itália e Reino Unido -, incluindo os respectivos níveis de industrialização e regimes políticos (ascensão do fascismo em Itália, a manutenção de uma ordem democrática no Reino Unido), Mattei argumenta que estas disparidades devem ser vistas como diferenças de intensidade do mesmo processo, devido a características inerentes de cada país, e não como acontecimentos de diferente natureza.
O RADICALISMO NASCIDO DO COLETIVISMO DE GUERRA
Segundo Mattei, nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, a ordem capitalista no mundo ocidental, sistema pautado pela propriedade privada e o trabalho assalariado, aparentava ser a forma natural de organizar as sociedades. Contrariamente aos sistemas político-económicos-institucionais anteriores, como o feudalismo, o capitalismo não tem mecanismos de coerção altamente explícitos e visíveis: os trabalhadores tinham a “liberdade de escolher” a quem vender a sua mão de obra. Além disso, o padrão ouro (a fixação do valor da moeda nacional ao ouro) operava há décadas, o que criava uma sensação de que o intervencionismo económico por parte do Estado (despesa pública, política monetária e cambial) era fisicamente impossível de implementar. Dados estes constrangimentos incrustados e naturalizados, a economia parecia ocorrer num campo paralelo ao da política.
Com o início da Primeira Guerra, este equilíbrio colapsa. Os britânicos iniciam o conflito militar com fé de que as leis de mercado sejam suficientes para transitar para uma economia de guerra, mas rapidamente são forçados a abandonar esta ideia. A mobilização de recursos para o esforço de guerra leva a uma nova ordem económica, definida por coletivismo de guerra. Sem representar um total rompimento com o capitalismo, o coletivismo de guerra acabou por corroer os principais pilares do capitalismo, ao atacar os direitos de propriedade e controlar o funcionamento de mercados. O Estado ocupa fábricas e terras; controla preços, salários e margens de lucros; quebra patentes; e regula o mercado de trabalho com mão firme.
Esta combinação de instrumentos promove uma rápida transformação do modo de organizar a economia, tornando evidente que esta sempre foi definida por relações políticas, longe de uma qualquer ordem natural. Esta noção de que a economia é inerentemente política cria uma tensão entre classes, que durante a guerra é temporariamente suportada pela noção da “união nacional”.
Mattei reconhece o papel histórico do coletivismo de guerra sem cair na tentação de romantizar os feitos e méritos. Apesar de ter provado ser uma forma eficiente de gerir uma economia de guerra, e no caso italiano de industrializar o país, o seu objetivo nunca foi empoderar as classes trabalhadoras, como as leis anti-greve e a expansao do trabalho infantil demonstram. O grande mérito do coletivismo de guerra foi retirar a economia de um pedestal acima da política – criando assim um consenso entre todas as classes de que era impossível regressar à anterior ordem social.
Este contexto de mobilização e empoderamento das classes trabalhadoras, aliadas a burocratas reformistas (os reconstrutivistas) por uma transição para um “Socialismo de Estado”, conduz a tremendas transformações sociais. Ambos os países expandiram os seus sistemas de protecção social. O Reino Unido deu os primeiros passos na criação de um sistema de saúde; os sindicatos passaram a ter um maior peso na definição dos rumos políticos; uma parte da economia manteve-se nacionalizada; e as cooperativas e guildas tiveram um papel importantíssimo na expansão do parque habitacional. No caso italiano, em cinco anos, o país passava de um Estado Social praticamente inexistente para um modelo comparável com os seus parceiros europeus. Entre outras políticas, o sufrágio masculino tornou-se universal e Itália implementou o seguro de desemprego mais abrangente do mundo ocidental.
O sucesso do reformismo dos reconstrutivistas, aliado às classes populares, reforçou a ideia de que o controlo dos meios de produção é essencialmente um processo de disputa política. Em vez de apaziguar a classe trabalhadora, estes ganhos radicalizam-na ainda mais, em especial na Itália. Um período que ficou conhecido como os anos vermelhos (1919-1920), em que o semanário L'Ordine Nuovo é co-fundado por Antonio Gramsci, destacado filósofo marxista e posteriormente líder comunista.
Com os ventos da revolução russa a soprar na Europa ocidental, e inspirados nos instrumentos usados durante o coletivismo de guerra, os conselhos de trabalhadores iniciam uma onda massiva de greves e ocupações de fábricas e terras, em que a classe dominante italiana é colocada na defensiva. A força e dimensão destes movimentos – que envolveu meio milhão de trabalhadores – era tal que o governo italiano optou pela neutralidade, alegando a incapacidade das suas forças de segurança para travar os trabalhadores. Dado o calor e a popularidade destes movimentos, Mussolini (ainda na oposição) viu-se obrigado a expressar de forma oportunista a sua simpatia por estes movimentos operários.
O exemplo que melhor descreve a sensação de inevitabilidade das mudanças sociais exigidas pelos trabalhadores italianos foi o dono e fundador da Fiat (Giovanni Agnelli) propor formalmente tornar a sua empresa numa cooperativa. Agnelli, em 1920, resume na perfeição a tese do livro de Mattei, ao afirmar que “no atual sistema, as relações entre gestores e trabalhadores são simplesmente impossíveis. As massas hoje não têm mais vontade de trabalhar. Eles são movidos apenas por noções políticas. Os seus ganhos recentes não significam nada para eles... Como pode alguém construir algo com a ajuda de 25 mil inimigos?”.
Um século depois, sabemos que a Itália não só não se tornou num regime socialista, como a Fiat continuou nas mãos de Agnelli. Mussolini chegou ao poder dois anos depois dos “anos vermelhos”. Segundo a autora, esta viragem repentina dos rumos políticos italianos (e no Reino Unido, em menor medida) necessitou de dois pilares: a austeridade para disciplinar os trabalhadores, e uma roupagem tecnocrática que voltasse a colocar a economia fora da esfera política.
NATURALIZAR A AUSTERIDADE DISCIPLINADORA COMO ALGO INEVITÁVEL
Dados os ventos de mudança da década de 1920, as classes dominantes procuravam formas de criar um curto-circuito ao clima de mudanças económicas e sociais. A tentativa de preservar a ordem social, sintetizada na frase “trabalhar mais e consumir menos”, surge como uma aliança ativa entre a burguesia e tecnocratas económicos. A Ordem do Capital categoriza os mecanismos de empobrecimento dos trabalhadores (coerção) em três grupos: a austeridade orçamental (redução das funções sociais do estado e seus investimentos), austeridade monetária (aumento das taxas de juro e redução do crédito) e austeridade industrial (redução dos direitos laborais e de greve).
O trio de austeridade coercitiva apresentou moldes e intensidades diferentes no Reino Unido e Itália, refletindo as condições institucionais de cada país. De qualquer forma, em ambos os casos o poder dos trabalhadores foi reduzido, e consequentemente as suas condições de vida.
No caso britânico, o processo austeritário ocorreu dentro de uma ordem parlamentar, sendo liderado pela elite da burocracia britânica, muito pouco simpática às classes trabalhadoras, e com a ajuda da “independência” do Banco Central e do sistema financeiro. Uma combinação de cortes das despesas do estado, uma transferência da carga fiscal dos rendimentos para consumo, restrições temporárias à atividade sindical, e a contracção do crédito atiravam milhares de trabalhadores para o desemprego. Esta recessão autoimposta, apesar de afetar temporariamente a rentabilidade do capital, almejava sufocar a atividade sindical e capacidade reivindicativa de forma estrutural e permanente.
Os burocratas britânicos reconheciam que a independência do banco central e do sistema financeiro tornavam a austeridade politicamente mais fácil de executar numa ordem parlamentar, pois estas estruturas são percepcionadas como apolíticas, reduzindo a pressão e oposição popular a estas. O diagnóstico de Ralph Hawtrey, um dos tecnocratas britânicos neste processo, expressava esta ideia na perfeição, ao afirmar que “o governo tem de responder aos críticos e a sua longevidade depende da sua popularidade” enquanto o Banco de Inglaterra “tem a total liberdade para seguir a prescrição [austeritária] porque nunca se justifica, nunca se arrepende e nunca pede desculpas”.
Apesar de várias semelhanças, a austeridade industrial era o ponta de lança do ataque aos trabalhadores italianos. Dado o poder do fascismo italiano, era possível recorrer à violência como forma de coação para reduzir salários e aumentar horários de trabalho, sem atirar a economia para uma recessão. Por outras palavras, o Estado fascista, liderado por Mussolini, usava a sua força para retomar a ordem do capital com rapidez.
Em ambos os casos, a austeridade era altamente impopular entre as classes trabalhadoras. E é aí que surge o papel dos tecnocratas económicos, que usam a sua autoridade moral para criar o difícil consenso social em torno destas medidas. A obra de Mattei foca-se em mais detalhe no caso italiano, em que quatro economistas - dois fascistas (Alberto De Stefani e Maffeo Pantaleoni) e dois liberais (Umberto Ricci e Luigi Einaudi) - são os principais articuladores deste consenso intelectual em torno da austeridade. Apesar de estes economistas serem colocados em campos políticos diferentes, o livro torna bem claro que os seus diagnósticos e prescrições para a economia italiana são os mesmos. Os liberais, mesmo não sendo alinhados com todos os aspectos autoritários do regime de Mussolini, mostram não serem contrários aos mecanismos de repressão usados contra os trabalhadores.
Dos quatro tecnocratas italianos analisados na obra, Mattei sente especial necessidade de apontar o dedo ao liberal Einaudi. O nome da obra, A Ordem do Capital, tem origem num artigo deste. Ao contrário dos outros, Einaudi conseguiu distanciar-se de tal forma do regime fascista que se tornou uma importante liderança política do pós-guerra (Presidente da República entre 1948 e 1955). Apesar de divergências políticas, Mattei relembra que Einaudi era simpático aos elementos autoritários do modelo económico fascista.
Estes economistas dizem ser seguidores da “economia pura”, um parente da economia dominante contemporânea, que alega defender uma verdade absoluta sem representar interesses de grupos específicos, algo comparável a uma ciência exata. No entanto, no desenrolar dos seus argumentos e pensamento, fica evidente que a sua análise tinha muito pouco de pura – e muito de política.
O quarteto de economistas responsabilizavam os trabalhadores italianos pela situação económica do país, alegando que o consumo excessivo destes criava inflação, e a sua politização (materializada na forma de greves) criava o caos económico, ao permitir que os trabalhadores ganhassem mais do que aquilo que mereciam. O grupo de tecnocratas ia ainda mais longe ao defender que os trabalhadores não têm qualquer responsabilidade na criação de valor na economia e que a sua posição de classe é um mero reflexo das suas opções individuais. Segundo eles, o progresso económico advém do fato da classe empreendedora ser disciplinada e frugal, tendo assim capacidade de investir, contrastando com as classes populares que se mantêm pobres dada a sua fraca disciplina financeira.
Os argumentos classistas, que pretendem ser baseados numa base científica, não são um artefacto do facismo italiano. É impossível não notar a semelhança entre os argumentos utilizados no parágrafo acima e os presentes no debate português, quer antes, quer depois dos anos do programa de austeridade da Troika. Durante a crise financeira, os portugueses ouviram este tipo de discurso moralista-disciplinador vindo tanto de elites externas (como o Ministro das Finanças dos Países Baixos a falar de gastos em “mulheres e álcool”) como internas (no famoso “não podemos continuar a viver acima das nossas possibilidades” do Presidente Cavaco Silva). Noutras ocasiões, este discurso também veio de alguns dos mais credenciados economistas liberais de Portugal . Tecnocratas como João César das Neves e Ricardo Reis, também culpabilizam os hábitos dos mais pobres para explicar a situação do país (aqui), ou a sua condição de classes (aqui).
Nos eternos debates que tentam colar o fascimo à esquerda, A Ordem do Capital destrói por completo o mito liberal de que o regime de Mussolini tinha algumas características socialistas no seu modelo de desenvolvimento económico. O fascismo italiano foi durante anos amplamente elogiado pelo sistema financeiro internacional e meios de comunicação associados a este. Por exemplo, Einaudi foi correspondente da revista The Economist, tecendo vários elogios às reformas de Mussolini, pela forma como conseguiu restabelecer os pilares do capitalismo em Itália. Giovanni Agnelli, dono da Fiat, já não tinha que se preocupar em tornar a sua empresa numa cooperativa, nem a satisfazer as exigências salariais dos trabalhadores.
O punho de ferro de Il Duce garantia que era extraída a mais-valia suficiente aos trabalhadores italianos para garantir simultaneamente os interesses dos credores internacionais (ingleses e norte-americanos) e da burguesia italiana. A queda abrupta do número de greves durante o fascismo era apresentada como a prova do sucesso económico de Mussolini.
Quando confrontados com a natureza autoritária do regime, a elite credora inglesa refugiava-se em argumentos xenófobos, como o povo italiano não ser culturalmente apto para viver num regime democrático, citando a forma como os italianos viviam durante o Império Romano. De novo, encontra-se uma coincidência com o debate atual em Portugal.
KEYNES VS. KALECKI
A Ordem do Capital dá um grande contributo no recentramento geográfico e temporal do debate político-económico fora do campo neoliberal. O período pós-segunda guerra mundial, é geralmente visto no norte global como a idade de ouro do capitalismo. Alguns dos economistas que se tornaram mais populares na última década – como Thomas Piketty e Mariana Mazzucato – revisitaram as virtudes do modelo do pós-guerra, contrastando com o modelo neoliberal atualmente hegemónico. O trabalho de Mattei, tal como os contributos de Isabella Weber (China nas décadas de 1970-1980) e outros, reforça a importância do campo progressista não se amarrar ao pós-guerra, muitas vezes feito por questões meramente técnicas, como a maior disponibilidade de dados estatísticos.
O curto período entre guerras na Itália e no Reino Unido é caracterizado por várias experiências radicais de democratização económica - enquanto as ondas de choque dos bolcheviques se faziam sentir a leste - em áreas como a habitação, produção alimentar e gestão de recursos naturais. Este período pode servir de inspiração para uma reorganização socioeconómica numa era de policrise.
Mesmo sem ser um livro sobre Keynes e suas ideias, a Ordem do Capital acaba por ser uma crítica ao Keynesianismo. A autora expõe, de forma bastante convincente, que tal como a ordem austeritária, o keynesianismo acabou por ser uma outra forma de manter os principais pilares do sistema capitalista intacto. Contrariamente à austeridade, que cria profundas crises económicas para manter o balanço de poder inato, o keynesianismo é um modelo que tenta manter o mesmo equilíbrio através da estabilização dos ciclos económicos. Ambos os modelos apresentam um inerente receio das exigências populares e outras formas de organização social, como foi reconhecido pelo próprio Keynes ao defender que era necessário proteger “a fina camada de civilização existente”.
A abordagem de Mattei resgata o pensamento do economista Polaco Michał Kalecki, que apesar de várias convergências com Keynes, adiciona uma camada política e de dinâmica de classes à análise do ciclo económico. Kalecki argumenta que a classe patronal era contra o pleno emprego, não por motivos económicos, mas majoritariamente por motivos de disputa política. O pleno emprego, ao melhorar as condições de vida dos trabalhadores, altera o equilíbrio de poder a seu favor, o que aumenta o seu poder negocial. Este processo mostra o porquê da classe empresarial não ser antagónica a choques autoritários, mesmo que estes afetem a sua lucratividade no curto prazo.
A ORDEM DO CAPITAL NO SÉCULO XXI
Por fim, a última parte de A Ordem do Capital foca-se em acontecimentos mais atuais na perspectiva desenvolvida ao longo do livro. Sendo uma reflexão fundamental, esta parte acaba por ser o ponto mais fraco da obra.
O termo austeridade passa a ser utilizado de forma excessiva e menos rigorosa, para substituir outros conceitos brilhantemente desenvolvidos ao longo do livro, como “despolitizar a economia” e “criar a sensação que a economia segue uma ordem natural”. Além disso, a Ordem do capital infelizmente não explora suficientemente as diferenças entre a austeridade de 1920 e o estado de quase austeridade permanente do século XXI.
Ao contrário de 1920, em que as classes trabalhadoras estavam em clara ascensão (mesmo que as condições laborais fossem piores que hoje), as últimas décadas têm sido marcadas pela estagnação salarial, perda de direitos e queda da participação sindical. Apesar do aumento das despesas com medidas de emergência social na pandemia, as relações político-económicas regressam ao seu normal modo de operar, sem quaisquer alterações estruturais. Enquanto há 100 anos, o dono da Fiat, mesmo que por um breve período de tempo, tenha visto como inevitável tornar a sua empresa numa cooperativa, Gurner e outros apenas se queixam do trabalho remoto e da “arrogância” dos trabalhadores. Por mais que os empresários não gostem da suposta arrogância dos trabalhadores, ou mesmo da implementação total do trabalho remoto para algumas categorias professionais, estamos longe de estar num período de grandes greves e debates sobre modelos alternativos de controlar os meios de produção.
Logo, se a austeridade se mantém como mecanismo de disciplina, este tem de reflectir estas diferenças. A obra não é explícita neste aspeto, mas os seus desenvolvimentos fazem-nos considerar que a austeridade do século XXI continua a ser um um mecanismo disciplinador, embora de uma natureza essencialmente preventiva, contrapondo-se ao ativismo austeritário do período entre guerras. A atual austeridade está essencialmente assente em mecanismos de estabilização totalmente institucionalizados. Estes estão presentes nas regras orçamentais, constitucionalização de tetos de dívida, bancos centrais “independentes” sem qualquer escrutínio político. Ao contrário da ordem imposta há 100 anos, a de hoje passa por natural, após um esforço de décadas de criar esta consenso. Todos estes elementos são ancorados num consenso dominado por um ensino universitário cada vez mais dependente do financiamento das elites dominantes.
As dinâmicas económicas nos Estados Unidos da América (EUA) revelam bem a natureza preventiva da austeridade institucionalizada no século 21. Depois da pandemia, numa combinação de fatores como estímulos orçamentais e a reorganização da força de trabalho, os trabalhadores dos EUA encontravam-se com maior poder negocial que nos anos anteriores, o que se refletia em ganhos salariais, aumento das greves e formação de novos sindicatos.
Antes mesmo de qualquer ameaça às estruturas económicas dos EUA, a Reserva Federal iniciou um período de subidas das taxas de juro em nome do combate à inflação, mesmo que esta tenha sido essencialmente causada por fatores externos e temporários (guerra na Ucrânia e disrupções das cadeias de abastecimento). O aumento das taxas de juro foi abertamente reconhecido como um mecanismo de contenção da atividade económica que, conjuntamente com aumentos os custos de crédito das famílias, suavizou o poder negocial dos trabalhadores, reduzindo a pressão para crescimento salarial.
Esta tese ser defendida abertamente mostra como a economia voltou a ser vista como algo superior à política. Bancos Centrais e tecnocratas defendem estas decisões como inevitabilidades, ou mesmo o cumprimento de regras naturais do funcionamento da sociedade, em vez de opções políticas.
Larry Summers, um dos principais economistas do consenso tecnocrático dos EUA desde a década de 1980, afirmava em 2021, num tom pseudo-científico, que para reduzir a inflação era necessário aumentar a taxa de desemprego. Segundo Summers, existiam duas opções: aumentar a taxa de desemprego para 5% durante 5 anos, ou aumentá-la para 7,5% durante dois anos. Por outras palavras, disciplinar preventivamente os trabalhadores era fundamental para manter a ordem económica.
Um ano e meio depois, e apesar das ações deliberadas da Reserva Federal para arrefecer a economia, a realidade contradiz por completo Summers: a inflação tem vindo a estabilizar, ao mesmo tempo que o desemprego se mantém baixo e os trabalhadores conseguiram importantes vitórias laborais.
MATTEI E OS 50 ANOS DA REVOLUÇÃO DE ABRIL
Além de uma análise político-económica única, a perspectiva apresentada em A Ordem do Capital tem uma enorme utilidade para a compreensão de outros processos históricos, nomeadamente o processo revolucionário português e o seu gradual esvaziamento. A mobilização para a guerra colonial tem claros paralelos com o papel do coletivismo de guerra italiano e britânico, como um catalisador na politização da disputa económica e na promoção de um conflito de classes mais acentuado.
Na visão convencional, a guerra colonial teve um papel essencial na formação ideológica dos militares, através da sua experiência in loco em África (“o 25 de Abril começou em Africa”). Ao lermos a obra de Mattei podemos questionar-nos até que ponto o papel da infraestrutura de guerra do Estado Novo – maior controlo da economia pelo Estado, intervenção nos preços e rendas, e o controlo de parte significativa da mão de obra – contribuiu para a criação de instrumentos que pudessem ser adaptados na disputa política dos meios de produção, por parte de uma coordenação entre militares revolucionários e as classes populares. Os relatos de Otelo de Saraiva Carvalho sobre o papel dos oficiais para promover a transformação social, em questões laborais e nas ocupações de terras e casas, demonstra como a transformação do aparelho militar foi uma peça chave do processo revolucionário.
No PREC, tal como nos anos vermelhos italianos, o modelo capitalista não foi substituído, mas foram conseguidas importantes conquistas para as classes populares. Em ambos os países dá-se uma construção rápida de um Estado Social moderno, no caso português na contracorrente das tendências neoliberalizantes globais. Os ganhos materiais vão para além do Estado: há uma valorização do Trabalho face ao Capital, com uma mão de obra crescentemente sindicalizada, combinada com ocupação de terras e construção de habitações populares.
O processo de reversão destes ganhos em solo luso segue os elementos de coesão e criação de consenso, ilustrados em A Ordem do Capital. A coerção, pela forma da austeridade, deu-se de forma mais gradual do que nos casos apresentados no livro, assente nos programas de ajustamento do FMI e em revisões constitucionais. O primeiro programa de austeridade do FMI, logo em 1977, flexibiliza o mercado de trabalho, restringe o crédito, impõe a desvalorização cambial, cortes orçamentais e restrições aos aumentos salariais. Poucos anos depois, dá-se a revisão constitucional de 1982, cujo objetivo era “diminuir a carga ideológica da Constituição”. Esta alteração torna evidente que existe um consenso tecnocrático emergente, que tentava (com sucesso) distanciar artificialmente a economia da política, desde a revolução. Menos de uma década depois, outra revisão constitucional abre as portas à reversão de uma das maiores alterações da estrutura económica nacional pós-revolução: as nacionalizações.
A caminhada na construção de um consenso tecnocrático com uma fachada apolítica não se ficou por estas modificações (“reformas estruturais”). A integração europeia, culminando na entrada do Euro, é o equivalente ao regresso do padrão ouro no Reino Unido e em Itália, algo reconhecido por Mattei. Nas duas situações, a ação política na economia é totalmente esvaziada por constrangimentos políticos auto-impostos que aparentam ser regras da natureza.
João Rodrigues (que dedicou uma coluna de opinião ao livro de Mattei) no seu livro “O Neoliberalismo Não é um Slogan” explorou em detalhe esta transição. Seguindo a mesma lógica de Mattei, João Rodrigues mostra como o papel dos economistas portugueses foi essencial para criar o consenso de que a integração europeia era inevitável e benigna. No caso português, a entrada de fundos europeus e o clima de crescimento económico global favorável a partir da segunda metade da década de 1980, tornou a coerção austeritária menos necessária.
Na celebração dos 50 anos da revolução dos cravos, A Ordem do Capital é uma leitura indispensável para todos aqueles que querem continuar em Abril.
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