A Web Summit está em todo o lado, excepto na produtividade
A falsa promessa da Web Summit contribuir para um setor tecnológico português faz parte do modelo liberal-rentista dominante em Portugal
A Web Summit deste ano traz uma novidade. No seguimento de declarações sobre a Palestina de Paddy Cosgrave, CEO do evento, várias empresas de referência do mundo da tecnologia, como a Google, a Meta (dona do Facebook e Instagram), IBM, Siemens, Apple, Microsoft, cancelaram a sua presença no evento. Como compensação, foi trazida Cristina Ferreira, a apresentadora de televisão virada motivational speaker. Para a acompanhar vem um robô falante com o nome Desdemona, que faz parte de uma banda “Jam Galaxy”.
É difícil ver o que Cristina Ferreira faz num evento tecnológico. Um robô com uma peruca violeta tem mais a ver com atrair um jornalismo que se confunde com entretenimento do que com novos avanços na chamada inteligência artificial.
Apesar da aparente decadência do evento depois dos cancelamentos, Cristina Ferreira já tinha estado na edição de 2022 da Web Summit e o novo robô é a versão melhorada de outro robô (sem peruca!) que tinha aparecido em anos anteriores, a Sophia. As saídas do evento não parecem ter introduzido uma Web Summit com pouca tecnologia, apenas confirmam esta tratar-se de uma conferência com vários tópicos moderadamente interessantes mas pouco tecnológicos.
Se olharmos para os convidados de edições anteriores, entre os quais alguns empresários do ramo tecnológico, abundam convidados políticos (que dizem as mesmas banalidades sobre tecnologia que diriam em qualquer outro espaço), a atriz Jéssica Athayde (na edição deste ano), o antigo futebolista Eric Cantona, o campeão de boxe Wladimir Klitschko, o wrestler Paul Michael Levesque (Triple H), executivos de jornalismo, o presidente da Liga de futebol espanhola, atores de Game of Thrones como Liam Cunningham e Maisie Williams, membros da casa real britânica, comediantes, entre outras personagens que têm pouco a haver com tecnologia. Uma lista exaustiva é demasiado longa para um artigo.
Tudo isto pode-nos deixar com uma impressão de fraude, mas Portugal investir (financeira e politicamente) para atrair a Web Summit não é uma coincidência: a roupagem tecnológica para algo que tem muito pouco de inovador é a marca do desenvolvimento português dos últimos anos.
A par da Web Summit, os Unicórnios e os Nómadas Digitais estão por todo o lado no discurso nacional. Carlos Moedas e Fernando Medina disputam a paternidade da “fábrica de unicórnios” em Lisboa. António Costa encantava-se em atrair nómadas digitais e Marcelo Rebelo de Sousa aspira a ser intérprete de cavalos alados. A cada Web Summit com muito pouco de Web chovem promessas de atração de talento, investimento e tecnologias que trarão um futuro tecnológico risonho para Portugal.
Além de um espetáculo com elementos ridículos e cómicos, é evidente o contraste entre a narrativa apresentada – startups, novas tecnologias e superestrelas do mundo digital – e o modelo de desenvolvimento do país nos últimos anos – imobiliário, turismo e rentismo.
Esta disparidade não é um acidente, é a grande razão para o apelo da narrativa. Nenhum dos gastos escandalosos com a Web Summit, borlas fiscais a empresas pseudo-tecnológicas e “centros de inovação” são desperdícios. Todavia, o dinheiro gasto não serve para dinamizar a economia do país, mas para uma campanha omnipresente de publicidade.
Não só publicidade para promover a lenga-lenga tecnológica, mas também, talvez mais importantemente, para esconder a história bem mais real de um modelo de desenvolvimento baseado em atividades de baixo valor que têm conduzido o país nos últimos anos. Trata-se do “modelo liberal-rentista da economia dos grandes eventos”. Os elementos ridículos da propaganda acabam por lhe dar mais força, permitem que nos foquemos nesse ridículo ao invés da contradição da mensagem.
O grande reforço desta narrativa chegou a meio da década passada, generalizando para a sociedade portuguesa slogans que vinham a ganhar força em Business Schools como a Nova SBE.
Numa publicação da CNN reproduzida pelos media portugueses em 2017 (um ano depois do primeiro Web Summit) com o título (tradução livre) “A nova Berlim? Como a austeridade ajudou os criativos de Lisboa a serem bem-sucedidos”, o destaque foi para as rendas baixas, edifícios vazios e comida barata que estariam a atrair uma onda de criativos. Apesar de se focar em criativos no sentido artístico e não tecnológico, acabou por ser um marco na articulação da narrativa que a classe dominante em Portugal tem vindo a usar nos últimos tempos.
Importantemente logo no título do artigo é criação de uma justificação para a (injustificável) austeridade sofrida durante os anos de intervenção da Troika. No entanto, existe mesmo uma inseparabilidade entre esta e o virar de Portugal para uma República de Airbnbs. Mas, ao contrário do que é afirmado pela CNN, não foram a criatividade e vitalidade que emergiram das ruínas da austeridade. O alimento deste modelo de crescimento foi a pressão para expandir a economia portuguesa altamente endividada sem instrumentos de política económica e sob os condicionamentos do pós-Troika.
A roupagem tecnológica da Web Summit coincide com o modelo de desenvolvimento português e com o constante foco em atrair nómadas “digitais”. O termo “digital” acaba por ser um elogio pouco merecido. Os estrangeiros que se mudam para Portugal vão sendo apresentados como trabalhadores de indústrias tecnológicas como “inteligência artificial” e web development. No entanto, passada mais de meia década de Lisboa ter sido apresentada como a nova Meca tecnológica, não se avista qualquer desabrochar de um novo ambiente de startups na cidade (ou artística como esperado pela CNN). No sentido inverso, com o peso acrescido do turismo de baixo valor, a produtividade vai caindo e a economia portuguesa (em especial em Lisboa) fica cada vez mais enterrada num modelo económico de baixo valor.
Quando são anunciados grandes novos projetos em Portugal, não se tratam de grandes centros de decisão que esperamos encontrar em cidades como Zurique ou Amesterdão, mas back-offices de pouco valor acrescentado, muitas vezes apelidados de “centros de serviços” ou “centros de excelência”. Em geral não trazem mais inovação tecnológica do que os back-offices da banca que aproveitam os baixos salários de trabalhadores qualificados em Portugal, o fuso horário europeu e a capacidade de falar línguas estrangeiras.
Apesar de os dados serem escassos, cruzar com os ditos nómadas digitais mostra uma evidência: em grande parte, não são data scientists da Google ou os fundadores de start-ups promissoras. Por regra, estes estrangeiros que se encontram em Portugal são profissionais qualificados, mas estão longe do topo das empresas tecnológicas.
Muitas vezes são funcionários sem perspectivas de progredir na carreira que aceitam a flexibilidade como um prémio de consolação, muitas outras são trabalhadores de call-centers remotos que se localizam em Portugal e, amiúde, pessoas com carreiras com muito pouco de tecnológico. Em muitos casos são reformados com pensões baixas para os seus países de origem e que procuram esticar os rendimentos em Portugal.
Assim, a promessa de que podem trazer consigo o mundo empresarial das empresas mais modernas do mundo já vem frustrada à partida. Com rendimentos que não seriam muito acima da média nos seus países de origem, têm ganhos avultados para o contexto português, mas, segundo o relatado, não ao nível de poderem aguentar os aumentos sucessivos das rendas em Portugal. Mesmo com os níveis de rendas em Portugal, os altos quadros das multinacionais tecnológicas não se sentiriam pressionados pelo mercado atual imobiliário.
Os fatores que de facto impulsionam o crescimento de empresas tecnológicas podem ser difíceis de entender, mas podemos excluir dar borlas fiscais a nómadas “digitais” e a eventos turísticos como a Web Summit.
Nos anos 1980, o economista estadunidense Robert Solow observou que, apesar da revolução tecnológica que desabrochava, os ganhos de produtividade tardavam em aparecer: “a era da computação está em todo o lado, excepto nas estatísticas da produtuvidade”. Podemos aplicar este raciocínio aos últimos anos da economia portuguesa com a Web Summit, os nómadas digitais e os unicórnios, que estão por todo o lado, excepto nas mais valias para Portugal.
Tornou-se popular apontar que a classe dominante fala de uma economia em crescimento enquanto os portugueses sentem um país diferente no dia a dia, especialmente na carteira. Também seria útil falar da criação de narrativas de uma economia a virar a esquina e prestes a chegar a um brilhante futuro tecnológico. Para quem está no país real, apenas se vislumbra um modelo com um futuro cinzento marcado pelo imobiliário entregue a estrangeiros.
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