Lucro à margem da concorrência
O poder económico das cadeias de supermercados resume o falhanço do capitalismo português
Nos últimos dias, os supermercados portugueses têm estado sob fogo. A ASAE fez uma série de fiscalizações aos preços praticados nestas superfícies. O governo pondera legislar formas de limitar margens de lucro, algo que foi feito noutros países europeus, liderados por governos de direita, como a França e Grécia.
Rapidamente, apareceram os defensores incondicionais das cadeias supermercados, maioritariamente vindos de um movimento político auto-intitulado de liberal, que no plano programático defende um Estado forte, regulador e fiscalizador. Tentou-se criar a ideia, de forma implícita, que as margens de lucros do sector são fixas, mesmo que a estrutura de custos tenha mudado; culpabiliza-se os confinamentos; e até foi expressa alguma estupefação com mecanismos de regulação e fiscalização, porque “os preços são livres”.
O setor do retalho em Portugal está altamente concentrado nas mãos de poucas famílias e tem um histórico de comportamentos anticoncorrenciais. A hipótese de cartelização por parte destes oligopólios, após a guerra entre Rússia e Ucrânia, não pode ser vista como um caso isolado na economia portuguesa. O poder deste sector é simultaneamente uma das causas do empobrecimento da população, e a consequência directa de uma economia desindustrializada, com uma elite económica cada vez menos exposta à concorrência internacional.
AS 50 SOMBRAS DA CARTELIZAÇÃO
A possibilidade de cartelizar preços, contornando os princípios da concorrência entre empresas, está longe de ser uma novidade. Em 1776, Adam Smith, pai do liberalismo, escrevia “Pessoas do mesmo ofício raramente se encontram, mesmo para diversão, mas a conversa termina sempre numa conspiração contra o público ou na criação de algum artifício para aumentar os preços”. Num mundo em constante mudança tecnológica e com autoridades da concorrência, os encontros que Adam Smith se referia podem ter mudado de forma, mas continuam a existir.
Nas últimas décadas, foram revelados alguns exemplos de comportamentos anticoncorrenciais que mostram uma natureza cada vez mais complexa dos monopólios e cartéis. Tanto na Alemanha quanto no Reino Unido,existem provas que os operadores móveis tacitamente cartelizam os leilões de aquisição de espectro, dividindo os leilões entre operadores, de forma a não competirem ativamente e conseguirem os preços mais baixos possíveis. Os gigantes tecnológicos, como aMicrosoft e a Apple, foram acusados de usar as suas posições dominante num mercado para barrar a competição noutros mercados, como os seus serviços de motor de busca e de pagamentos.
Não faltam exemplos de cartelização moderna por parte das maiores empresas portuguesas. A Galp foi multada por participar num sofisticado cartel de betume em Espanha, durante 12 anos. A Fidelidade reconheceu participar num esquema de “práticas restritivas da concorrência de repartição de mercados” com outras quatro empresas durantes anos. Nas telecomunicações, a MEO já foi condenada por fixar preços com a Nowo; e estas duas empresas, juntamente com a Vodafone e NOS, foram acusadas de terem um cartel no mercado de publicidade do Google, desde 2010. Antes do atual pico inflacionário, a autoridade da concorrência concluiu que as principais redes de supermercados fixavam preços de forma implícita, através do seu distribuidor comum.
A ocorrência destes casos, combinado com o tempo que os processos de leva e o valor relativamente baixo das multas, mostra que os mecanismos de punição não são suficientes para conter essas tendências anticoncorrenciais ao longo das décadas.
Ao contrário de períodos de baixa inflação, um aumento simultâneo de preços não é necessariamente visto com desconfiança no atual contexto de guerra e disrupção das cadeiras de distribuição. No entanto, ter o diretor da Associação Portuguesa das Empresas de Distribuição - um sector que tem uma das principais empresas julgada pela fixação de preços - afirmar em público que os “preços ainda têm espaço para aumentar” não pode ser visto com naturalidade. Existe o risco que este tipo de prática de comunicação seja uma forma menos explícita de coordenação para aumentar as margens de lucro dos sectores em questão, sem ter que participar nos encontros que Adam Smith se referia em 1776.
Os mais recentes dados económicos dos Estado Unidos mostram que o aumento dos preços das empresas é muito superior ao necessário para cobrir os custos de produção causados pela guerra. As margens de lucro nos Estados Unidos aumentaram abruptamente, atingindo máximos que não eram vistos desde o final da Segunda Guerra Mundial.
No caso português, os aumentos de preços nos sectores dominados por oligopólios, quer seja na a alimentação ou nas telecomunicações (três empresas controlam o mercado), são superiores aos observados em Espanha ou na Zona Euro. O que reforça a ideia que estes setores aproveitam choques inflacionários para usar o seu excessivo poder de mercado para aumentar margens de lucros.
O grande retalho e as telecomunicações são áreas que não sofreram grandes disrupções com a pandemia, permitindo continuarem a ter altas rentabilidades (aqui e aqui). A distribuição alimentar foi incluída no imposto sobre os lucros extraordinários mas o mesmo não pode ser dito em relação ao oligopólio das telecomunicações. O governo deve expandir os impostos sobre os lucros extraordinários a este setor, em resposta ao recente aumentos de preços. Seria mais útil que ter o Ministro Galamba a lançar suspeitas de cartelização, enquanto nega as sugestões do regulador para reduzir os períodos de fidelização.
O atual modelo regulador, mesmo multando estes oligopólios, não tem sido um sucesso. No longo prazo, este problema estrutural da Portugal pode ser resolvido de duas formas: com o controlo público de uma parte significativa destes sectores (Portugal Telecom é um exemplo); ou com um regime de regulação que o Estado possa intervir diretamente em preços, como no caso suíço, que para além de ter um sector energético público e regulado, tem praticamenteum terço do cabaz de inflação composto por bens e serviços com preços regulados (inclui transporte, habitação e alimentos).
UM CAPITALISMO CADA VEZ MAIS DOMÉSTICO, OLIGOPOLISTA E RENTISTA
O poder das grandes cadeias de supermercados, e outros setores oligopolistas, mostram uma profunda fragilidade do capitalismo português. No século passado, Portugal era um país com uma burguesia industrial que operava em sectores que competiam na economia mundial, como os estaleiros navais da Lisnave, o sector químico da CUF ou a Cimpor (primeiro como empresa estatal) nos cimentos. Ao longo das décadas, grupos económicos como a CUF e SONAE passaram de conglomerados exportadores para extractores de rendas do estado através de PPPs (Brisa e Hospitais da CUF) ou membros de oligopólios domésticos (Continente e NOS). A classe empreendedora, de capitalistas mais pequenos, que se dedica cada vez mais à especulação imobiliária e exploração de Airbnbs. Este modelo de desenvolvimento é em parte resultado do processo de integração europeia que colocou Portugal num papel periférico dentro do bloco económico, fornecendo bens (sapatos) e serviços (turismo e call centers) de baixo valor para o centro da Europa, sem qualquer mecanismo (política cambial; e orçamental e industrial, devido às leis da concorrência) para desenvolver novos setores de alto valor tecnológico.
O pináculo da perversidade do capitalismo não competitivo português foi ter Soares dos Santos e Belmiro de Azevedo (apenas acompanhados por Américo Amorim) na lista de bilionários da Forbes durante anos. Esta lista era uma simples demonstração que o Pingo Doce e Continente, em vez de concorrerem, coabitam no mesmo mercado. Juntos dominam metade do mercado - colocando em perspectiva, a OPEP tem menos de 40% do mercado de petróleo - e são capazes de cobrar preços muito acima dos praticados em países europeus com salários mais altos (e impostos semelhantes). Os altos preços praticados nos últimos meses não são uma excepção, mas apenas o modus operandi da burguesia oligopolista portuguesa.
Defender cegamente estes grupos económicos não é uma defesa do livre mercado porque “os preços são livres”. É a apologia disfarçada de um capitalismo cada vez mais oligopolista, rentista e anticoncorrencial.
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