Problemas globais, soluções locais: os limites do localismo português
Dentro dos constrangimentos da União Europeia, a resposta ao neoliberalismo e à tecno-desregulação tem sido dada a nível local. Infelizmente, Portugal tem um caminho espinhoso pela frente.
Após várias décadas de liberalização económica no norte global, aliadas a um rápido desenvolvimento tecnológico, a regulação e taxação de grandes empresas tem-se tornado cada vez mais difícil. Esta combinação permite que os grandes grupos económicos separarem, do ponto de vista geográfico e da propriedade, os seus meios de produção (trabalho, capital físico e capital financeiro), aumentando a sua rentabilidade através da precarização do trabalho e do contorno da lei.
Empresas bilionárias, como a Uber, desenvolveram novos modelos de negócio que são a consequência direta deste modelo político-económico. A Uber não têm viaturas e nem cumpre quaisquer obrigações contratuais com a esmagadora maioria dos seus motoristas. Este modelo de negócio também está assente na repatriação de lucros para onde lhes é mais conveniente.
Esta tendência é particularmente problemática para Portugal, uma pequena economia altamente constrangida (e sem poder de influência) pelas regras europeias. Por mais contraintuitivo que pareça à primeira vista, a política municipal (e não o multilateralismo), tem sido um dos principais campos de batalha contra a tecno-desregulação global. Dentro destas limitações, a regionalização e aprofundamento dos poderes regulatórios a nível local é uma alternativa política mais realista de combater estes problemas do que esperar eternamente por uma reforma institucional da União Europeia, o que acaba por ser a resposta do política do PS sempre que confrontado com os dogmas e contradições de Bruxelas (aqui, aqui e aqui).
A CIDADE COMO CAMPO DE BATALHA
Enquanto governos nacionais defendiam cegamente o modelo de gig economy, com (o ainda Ministro da Economia) Macron a ponta de lança, e acusavam os críticos de rejeitar a modernidade, vários municípios remavam contra a maré e enfrentavam a precarização laboral e gentrificação, acelerada pela gig economy.
O executivo municipal de Barcelona, liderado por Ada Colau, implementou várias leis de regulação do alojamento local, mercado dominado pelo Airbnb, de forma a controlar os preços da habitação. Concomitantemente, o governo municipal de Seattle forçou empresas como a Uber a pagar licença de atestado médico aos motoristas durante o período de pandemia.
Estes confrontos entre governos municipais e grandes empresas dificilmente serão substituídos por outros níveis de governo, no atual contexto de liberalização de capitais e integração neoliberal Europeia, ditada pelas ‘leis da concorrência'. As recentes medidas do governo português na habitação, mesmo que tímidas e insuficientes, arriscam-se a sofrer o mesmo destino que pacote de medidas irlandês, e serem bloqueadas pela Comissão Europeia. A mesma Comissão Europeia que nunca bloqueou de forma preventiva, em nome da concorrência, o dumping fiscal dentro da UE, levado a cabo pela mesma Irlanda.
As especificidades das regulações locais têm um menor risco de violar as leis e normas de comércio e concorrência internacionais, que são os pilares institucionais do neoliberalismo. Em simultâneo, a política municipal consegue formar maiorias sociais que por vezes são irreplicáveis a nível nacional, devido a disparidades regionais. Por exemplo, regular sectores como o alojamento local em centros urbanos não cria um conflito direto com os interesses socioeconómicos de zonas rurais. Não menos relevante, ao confrontarem interesses empresariais em territórios localizados, a política municipal dificilmente coloca diretamente em causa a total sobrevivência de grandes grupos económicos, o que reduz a (ainda gigante) pressão lobista destes.
O EFEITO DOMINÓ
Celebrar intervenções de escala municipal não é um sintoma de derrotismo perante uma hegemonia neoliberal. Os espaços urbanos, são laboratórios democráticos, cujos sucessos são por vezes replicados numa escala nacional, de forma totalmente transformadora. Não é por acaso, que os ‘gigantes tecnológicos’ têm exercido um lobby enorme, mesmo em cidades onde já são regulados, demonstrando receios de que estas políticas se alastrem para outras zonas do globo.
No início do século 20, o executivo trabalhista em Londres – com a implementação de um sistema de saúde gratuito, controlo público dos transportes urbanos e construção de um parque habitacional municipal – desenhou as bases para o que seria o estado social criado pelo governo trabalhista Britânico, a partir de 1945. A importância política dos governos municipais Britânicos era tal, que Thatcher, após duas maiorias absolutas e um triunfo na greve dos mineiros, sentiu necessidade de abolir os ‘Metropolitan Councils’, todos governados por trabalhistas. Assim, o projecto político de Thatcher acabou com os últimos bastiões da oposição e criou um Estado centralizado, ainda mais forte, para promover o poder dos mercados.
O papel catalisador dos municípios não é um exclusivo da Europa do século XX. Na última década, a luta pelo aumento do salário mínimo para 15 dólares por hora nos Estados Unidos teve os seus primeiros triunfos em grandes centros urbanos, posteriormente expandido ao nível estadual, e parcialmente incluído na política federal do executivo Biden. Para além disso, os mais recentes movimentos de esquerda anglófonos, associados a gerações mais jovens, e frequentemente apelidados de Socialismo Millennial ou Geração Esquerda, têm apoiado figuras cujo percursos estão fortemente ligados a uma política municipal de esquerda: Bernie Sanders foi Mayor de Burlington entre 1981 e 1989, antes de ser eleito para a câmara dos representantes; enquanto os principais aliados de Corbyn, fizeram parte do ‘Metropolitan Council’ Londrino (1981-86) banido por Thatcher.
OS LIMITES POLÍTICOS DO LOCALISMO PORTUGUÊS
Durante a pandemia, os autarcas portugueses e suas equipas demonstraram uma enorme capacidade de adaptação e apoio às suas comunidades. Durante o período de confinamento, várias câmaras criaram plataformas municipais de entrega de refeições, coordenando restaurantes e taxistas locais; outras criaram linhas de apoio psicológico. Contudo, o poder local português não tem conseguido ser estruturalmente tão radical como noutros centros urbanos, o que não é apenas uma infeliz coincidência.
Portugal é um dos países mais centralizados do Norte Global. Os municípios gerem uma pequena parte dos recursos públicos e têm poderes (financeiros e regulatórios) bastante limitados, como demonstra a legislação dos vistos gold. Lisboa e o Porto, cujos preços dos imóveis mais do que duplicaram na última década, não detêm mecanismos para proibir este tipo de vistos; tendo ficado reféns de uma lei aprovada em parlamento em 2020, cuja implementação foi posteriormente adiada para 2022.
Ao contrário de experiências governativas do passado, o atual executivo tem considerado a regionalização e descentralização como uma prioridade programática. No entanto, o governo tem optado por um processo bastante ambíguo e contraditório - fortemente criticado pelo PCP e BE - focado no burocratismo e continuísmo, através da eleição indireta de estruturas burocráticas regionais já existentes e entrega de competências a municípios. Infelizmente, os limites do localismo português não são meramente explicados pelo centralismo.
Do ponto de vista socioeconómico e democrático, o poder local em Portugal tem geografias políticas disfuncionais. Esta contradição é particularmente notória nas principais Áreas Metropolitanas, onde centenas de milhares de cidadãos fazem o seu quotidiano entre municípios, mas a política local (o respectivo voto) está segregada por áreas de residência. Quando Carlos Moedas faz discursos sobre a ‘Cidade dos 15 Minutos’, prometeu estacionamento e transportes públicos mais baratos apenas para residentes, ou se opõe abertamente à estratégia de habitação do governo, torna evidente que o executivo de Lisboa governa para um grupo cada vez mais restrito, os moradores lisboetas sobreviventes (ou beneficiários diretos) do processo de gentrificação em curso.
Esta dinâmica geográfica-eleitoral inviabiliza uma política minimamente democrática no espaço metropolitano. Enquanto nos sucessos citados, os municípios estiveram na vanguarda da luta contra o neoliberalismo e contra a tecno-desregulação global, no caso português, os maiores municípios, cada vez mais segregados socialmente, estão a tornar-se os ponta-de-lança destes fenómenos.
A descentralização de competências para o nível municipal, defendido por António Costa, irá reforçar o poder de autarcas como Carlos Moedas e Rui Moreira. Os cofres dos municípios de Lisboa e Porto têm-se beneficiado de um longo ciclo de turistificação e inflação imobiliária, que depende do suor de milhares de trabalhadores incapazes de viver nestes municípios. Dar mais poderes a estes municípios, sem uma verdadeira regionalização que tenha mecanismos de equilíbrio de forças para os restantes concelhos metropolitanos, significará uma política elitizante, encapsulada no ‘nem toda a gente pode viver no centro’. Excedentes orçamentais serão provavelmente canalizados para políticas de reabilitação urbana que promova mais turismo, em nome da criação de emprego (precário); e para políticas de mobilidade que premeiam os residentes face esmagadora maioria da classe trabalhadora que vive longe do centro dessas cidades (ex: restrições ao uso do carro apenas para não residentes).
NÃO HÁ UMA REGIONALIZAÇÃO SEM IDEOLOGIAS
Gradualmente, a regionalização tem se tornado um consenso entre a maioria dos partidos portugueses. Estes ‘grandes consensos’ acabam sempre por ignorar grandes clivagens programáticas. A direita que se autoproclama liberal não tem como prioridade aprofundar a capacidade do estado a nível local nem um particular interesse em criar estruturas fortes acima dos municípios. No fundo, a regionalização - termo que evitam, preferindo falar em descentralização e autonomia - é apenas o Cavalo de Tróia para promover uma competição fiscal e laboral selvagem entre municípios, e garantir que autarquias entreguem serviços públicos a concessões privadas. Esta proposta tenta replicar, a nível local, as dinâmicas internacionais de ‘corrida até ao fundo’ que ambicionam para Portugal ( cujo modelo de referência é a Irlanda) de desvalorização de salários, redução de impostos sobre lucros e rendimentos altos, pagos com cortes nos serviços públicos.
Contrastando com este modelo de aprofundamento neoliberal, uma regionalização de esquerda ambiciona estruturas (acima dos municípios) com os poderes suficientes para replicar o radicalismo de executivos como Barcelona e Berlim, e que paute o debate nacional. Dentro dos constrangimentos da União Europeia, alguns dos problemas mais urgentes da sociedade portuguesa, como a crise habitacional, só serão superados com regulação e planeamento económico a nível metropolitano. Para isso, a regionalização tem de se contrapor a autarcas que estão demasiado confortáveis do ‘lado certo’ da 'Airbnbzação' e ‘Urberização’ económica.
Caso contrário, continuaremos a assistir a um processo de turistificação económica, enquanto aguardamos por raros anúncios ‘históricos’ das potências mundiais no combate ao dumping fiscal e da ‘boa vontade’ da União Europeia para executar investimento público Decisões raras, insuficientes e totalmente alheias aos nossos interesses democráticos.
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