Não é no número de imigrantes a receber que está a divisão ideológica
A imigração é um componente da regulação da economia, e o debate tem de ser feito nesses termos
No início do ano passado, o economista Angus Deaton escrevia uma reflexão em que afirmava “eu costumava concordar com o quase consenso entre economistas de que a imigração para os EUA era algo positivo, com grandes benefícios para os migrantes e pouco ou nenhum custo para os trabalhadores domésticos pouco qualificados. Não penso mais assim.”. A publicação era feita num blog do FMI, num texto intitulado de Repensando a Economia ou Repensando a Minha Economia (Rethinking Economics or Rethinking My Economics). Além de tocar na imigração, Deaton fazia várias críticas à classe profissional na qual se inclui e reconhecia mudanças no seu pensamento. Criticava os economistas pelo desinteresse na filosofia e no papel do poder e ainda reavaliava pela positiva a sua opinião sobre o papel dos sindicatos.
O peso institucional de Deaton dava força aos seus comentários. O escocês migrado para os Estados Unidos (EUA) viu-lhe atribuído o Prémio Nobel em 2015 e co-desenvolveu o conceito de “Mortes de Desespero” (Deaths of Despair) para caracterizar o fenómeno emergente de mortes associadas a overdoses, consumo de álcool e suicídios, em especial por parte de homens brancos de meia idade. Na sua avaliação sobre a imigração nos EUA, Deaton usava o passado e aponta a política restritiva de imigração do início do século XX como um factor promotor da migração interna de afro-americanos das zonas pobres do Sul para os centros industriais mais dinâmicos.
“Também foi plausivelmente argumentado que a Grande Migração de milhões de afro-americanos do Sul rural para as fábricas no Norte não teria acontecido se os donos das fábricas tivessem conseguido contratar os migrantes europeus que preferiam.”
Meses mais tarde, numa conversa com o Financial Times, o Nobel da Economia argumentava que os colegas de profissão, cingidos a modelos estatísticos, subestimam efeitos localizados e de longo-prazo da imigração. Enquanto confirmava que a esmagadora maioria dos estudos não identifica efeitos nos salários como um todo, Deaton afirmava que os mesmos estudos identificavam efeitos negativos (mesmo que reduzidos) nos salários mais baixos. Em Portugal, Susana Peralta observou uma dinâmica semelhante no que toca às consequências económicas após a chegada dos “retornados” na segunda metade da década de 1970 para os trabalhadores residentes, com especial impacto sobre as mulheres e aqueles com menos qualificações.
A evolução do pensamento de Deaton mostra os sinais do tempo. Com a mudança de ventos políticos em temas como a imigração, tornou-se necessário, no mínimo, os economistas reverem as suas premissas, ao invés de categorizar os sentimentos populares como simplesmente errados ou puro preconceito. O economista não o fez com impulsos nativistas ou racistas, como o exemplo da grande migração dos afro-americanos mostra, nem passou a defender um maior encerramento das fronteiras norte-americanas.
O contributo de Deaton não é o de julgar a imigração como algo bom ou mau, mas obrigar-nos a focar nas suas especificidades e efeitos. Acima de tudo, desafia-nos a olhar para a política de imigração como mais um componente da organização e da regulação das estruturas económicas. E confronta-nos com a ideia de que só a partir desse ponto de partida é possível pensar numa política progressista para o tema, articulada no sistema económico, sem se refugiar em slogans vagos (cosmopolitismo).
Olhar para a política de imigração de governos de extrema-direita, e os seus paralelos históricos, ajuda-nos a entender como lidam com as pressões em recrutar mão de obra estrangeira.
MAIS BRAÇOS, MENOS DIREITOS
Outrora o símbolo da democratização do antigo bloco comunista, Viktor Orbán é hoje o líder da extrema-direita europeia há mais tempo no poder. Por isso, analisar a sua segunda vida como primeiro-ministro da Hungria (2010-presente) ajuda-nos a entender a verdadeira política de imigração da extrema-direita europeia no século XXI. Ao contrário da retórica inflamada sobre uma uma invasão islâmica, as suas ações são profundamente influenciadas pelo plano económico.
Num país em declínio populacional desde a década de 1980, Orbán — político que diz defender uma “Europa Cristã” - tem promovido uma série de políticas de incentivo à natalidade, com o foco em famílias numerosas. O primeiro-ministro húngaro defende que esta é a forma de combater simultaneamente o declínio demográfico e a imigração – uma posição pouco surpreendente para um político que acredita que a Europa corre risco de ver a sua população substituída por “outras” e já classificou os migrantes de “veneno”.
Na economia húngara, o grande projeto da última década é a criação de um cluster de baterias, um dos mais importantes componentes da indústria emergente de carros eléctricos. Num país dependente da indústria automóvel alemã, o governo interpretou o Dieselgate como um risco existencial e desenhou uma estratégia de atração de multinacionais estrangeiras. A Hungria tem tido sucesso na atração de investimentos de gigantes asiáticos do sector — em especial chineses, mas também coreanos e japoneses. Mas numa sociedade em declínio populacional e com o desemprego em níveis baixos, o sucesso do projeto político-económico de Orbán confronta-se com um risco: a falta de mão de obra. Mesmo que as políticas de promoção da natalidade tenham tido algum sucesso, a Hungria continua com níveis de fertilidade que levariam ao declínio demográfico, e os novos nascimentos irão levar anos a entrar na força de trabalho.
A solução natural para este problema, que aparenta chocar com os valores do executivo húngaro, é o recurso a imigração e contra-intuitivamente foi mesmo esse o rumo seguido. Assinaram-se acordos de migração com países como as Filipinas, a Indonésia e o Quirguistão; estima-se que entre três e cinco mil dos 30 mil trabalhadores na indústria das baterias provenham de fora da União Europeia. Quando visto à superfície, os ideais nacionalistas do regime parecem ter vergado ao projeto de Orbán. Afinal, o país não fechou as fronteiras e respondeu aos sinais da economia. No entanto, não é no número de imigrantes, mas sim na forma como estes se enquadram na sociedade que a extrema-direita europeia contemporânea mostra o seu modelo.
Em grande medida, os trabalhadores importados para trabalhar na indústria das baterias usam vistos de “trabalhadores temporários”, uma autorização de residência amarrada a um empregador específico, sem direito de permanência e a reagrupamento familiar. Pela via legal, Orbán gere a tensão entre as suas ambições económicas e plano de uma Hungria cristã e etnicamente uniforme. No plano laboral, o modelo de imigração com vistos temporários e amarrados a uma empresa retira poder negocial aos trabalhadores. A chave está em privar os trabalhadores de opções, em especial de trocar o posto de trabalho por outro com melhores condições. Em termos práticos, fica reforçado o estatuto destes imigrantes como trabalhadores temporários e cidadãos de segunda, o que em nada ameaça a coerência de uma agenda de extrema-direita.
A estratégia de Orban não é nova, e aproxima-se do modelo atual das monarquias autoritárias do Golfo Pérsico. Cerca de três quartos da população no Catar e nos Emirados Árabes Unidos nasceu no estrangeiro, e está sujeita a uma hierarquia de vistos de trabalho, de acordo com o nível de qualificação do emprego. Como se tornou notável com a preparação do Mundial de Futebol no Catar de 2022, o modelo para albergar esta força de trabalho passa por muitas vezes privá-la do próprio passaporte e colocá-la em posição vulnerável face às exigências patronais. Em certa medida, é uma reinvenção do modelo de cidades controladas por uma única empresa — como no caso da United Fruit Company nas repúblicas bananeiras — monopolizando a vida dos trabalhadores através de um controlo de toda a economia local e das infraestruturas básicas.
A presença de imigrantes em regimes dominados pela extrema-direita não é um defeito mas uma característica destes modelos do século XXI, em que o etnonacionalismo vive de mãos dadas com economias altamente globalizadas. O regime de apartheid sul africano e o etno-estado de Israel também viveram décadas com modelos baseado na exploração de trabalhadores considerados de segunda categoria.
Situações que são típicas da imigração clandestina, com os direitos amputados e sem peso negocial, acabam por ser institucionalizadas, o que, crucialmente, retira aos patrões o risco de serem punidos pelo incumprimento da lei.
IMPORTAR O ORBANISMO
Num mundo a pender para uma direita radical, a vinculação da permanência legal no país a um posto de emprego específico — uma forma de desempoderamento do Trabalho — tem-se vindo a alastrar. O Reino Unido, na sua viragem à direita no pós-Brexit é um caso paradigmático, na medida em que a total vinculação do visto de trabalho ao empregador (p.ex.: mudar de emprego exige que a nova empresa financie um visto renovado) anda a par do número de imigrantes a níveis recorde. Os britânicos mostram que a cifra de trabalhadores vindos de fora não é o campo de discórdia ideológica. Assim, fica no ar a questão se o campo progressista deve abraçar slogans como “a economia precisa de imigração” — o argumento leva demasiado a sério a possibilidade de que um governo de direita radical negaria as exigências patronais por mais força de trabalho.
No caso do Chega, e seguindo esta lógica, apesar do discurso contra “as portas escancaradas”, as verdadeiras bandeiras políticas em torno do tema são a oposição ao direito ao reagrupamento familiar, o limitar dos apoios sociais, no mínimo durante os primeiros anos de residência, e o alargamento dos prazos para a obtenção de cidadania e do voto. O episódio de citar nomes de crianças matriculadas na escola, tanto no parlamento como nas redes sociais — que na prática da imigração é demonizar os imigrantes por colocarem os filhos na escola pública — alinha-se na perfeição com o modelo de “um país, dois sistemas” ensaiado pela extrema direita mundo fora.
Por conseguinte, não devemos estranhar que, um dia, André Ventura adote variantes da ideia de que os imigrantes contribuem para as pensões dos portugueses. Enquanto é a esquerda quem mais ressalva esse ponto como uma mais valia dos imigrantes para o país, o Chega é quem melhor se posiciona para maximizar esse “excedente”. A derradeira forma de os imigrantes “pagarem as nossas pensões” é não permanecerem o tempo suficiente em Portugal para usufruírem de uma.
As primeiras semanas do novo governo liderado pelo PSD têm sido pautadas pela gestão do equilíbrio entre as necessidades de mão de obra e mostrar-se empenhado em reduzir o número de imigrantes. De um lado, demoniza o regime em vigor até aqui (manifestação de interesse), do outro lado procura aprofundar os mecanismos assentes num vínculo entre imigrantes e empregos específicos, como vai sendo abordado para o sector da construção.
O que tem sido apresentado como uma medida circunstancial para acelerar os fundos europeus do Plano de Recuperação e Resiliência pode tornar-se o pilar de um novo modelo de imigração, que esvazia ainda mais o poder do Trabalho, convergindo com as práticas de Orbán e dos regimes autoritários do Golfo Pérsico. Em particular, um enfraquecimento dos direitos na área da construção deve ser visto de forma alarmante, sendo um sector cujos acidentes de trabalho fatais é historicamente alto e reverteu o progresso visto até 2018. Também seguindo os passos já tomados noutros países, num debate impensável há seis meses, António Leitão Amaro - ministro da presidência - passou a falar abertamente da possibilidade de diferenciar os direitos dos imigrantes através do seu nível de qualificações.
Para se impor como o bloco político com mais músculo na limitação à entrada de imigrantes, a direita recorre às operações de deportação (que sempre existiram) como um instrumento de performance política (aqui, aqui e aqui), dando-lhes um contorno ritualístico.FRONTEIRAS ABERTAS MERCADOS DE TRABALHO LIBERALIZADOS
Embora o discurso público tenha sido dominado por ideias como “Portugal tem as portas escancaradas” (na direita) e “a imigração responde à economia” (na esquerda) – o exemplo húngaro acaba por revelar segredo mal guardado da política portuguesa: Portugal, como a maioria dos países, não tem fronteiras abertas mas segmentos do mercado de trabalho mais e menos liberalizados.
O mercado de trabalho é uma rede complexa com várias indústrias, empresas, trabalhadores e diferentes níveis de regulação. Este inclui atividades profissionais reguladas através das ordens profissionais, outras regidas por leis nacionais, e até muitas em que nem sequer o domínio da língua portuguesa é essencial. Aquelas com maior peso regulatório geralmente exigem um diploma do ensino superior que seja reconhecido em Portugal, ou até mesmo de requisitos posteriores como estágios e exames das respectivas ordens profissionais. Assim, num extremo temos profissões em que as “portas escancaradas” nunca contribuíram para o preenchimento de postos de trabalho.
Casos notáveis, como a falta de médicos no SNS, seriam prontamente resolvidos se as fronteiras fossem realmente abertas à importação de médicos de países onde o custo do Trabalho é mais baixo. Mas como num caso particular que o jornal Público reportou recentemente, os médicos ucranianos a viver em Portugal confrontam-se com dificuldades no reconhecimento das suas qualificações. Da mesma forma, setores como a advocacia não recebem um fluxo significativo de profissionais estrangeiros. Vários cursos universitários adquiridos fora de Portugal não são reconhecidos, ou precisam de ser complementados com formação local. Como exemplo oposto, a vaga de dentistas brasileiros nos anos 1990 resultou de alterações no reconhecimento de diplomas do Brasil e não de mudanças nas leis de imigração.
Dito isso, o aumento exponencial do número de trabalhadores estrangeiros em Portugal é um fenómeno conduzido pela absorção em alguns mercados de Trabalho, geralmente com poucas ou nenhuma barreiras. A profissão de motorista, tanto de TVDE como de TukTuk, é provavelmente a mais visível e que melhor captura as transformações da economia e da sociedade nacional.
Naquele que foi primeiro um setor precário para muitos portugueses durante o período da Troika, conduzir TVDEs e TukTuks surgiu como uma oportunidade de fuga ao desemprego, em especial para jovens muitas vezes diplomados. Com a recuperação da economia e a queda da taxa de desemprego, muitos desses condutores foram transitando para empregos mais estáveis e mais bem pagos. Com isto, o crescimento do turismo nas principais cidades do país, aliado à desregulação destes novos setores (ao contrário dos táxis) criou terreno fértil para a importação de mão de obra, onde a fluência do inglês até pode ser mais importante do que o domínio da língua portuguesa.
Como Deaton salientava no seu exercício de autocrítica, o influxo de mais trabalhadores para estas áreas tem efeitos positivos para uma parte significativa sociedade, geralmente celebrados como ganhos incontestáveis por parte dos economistas (mais oferta e eventualmente preços mais baixos). No entanto, do outro lado, estão os efeitos disruptivos para os trabalhadores que já operam nesse setor. É à luz destas dinâmicas de perdedores e vencedores que devemos interpretar a posição do presidente da Associação Nacional de Condutores de Animação Turística, que tem uma posição favorável à maior regulação e à redução do número de TukTuks para metade em Lisboa [“Porque é preciso (...) separar o trigo do joio”]. De certa forma, a associação fundada em 2017 - que muito provavelmente representa os condutores mais antigos - pede o encerramento das suas fronteiras. É a partir desse ângulo que devemos interpretar as novas regras de formação de motoristas de TVDE, um pequeno ajuste que baixa o ritmo de entrada de novos condutores.
Na prática, fronteiras totalmente abertas significaria a total desregulação de todos os mercados de trabalho. Esse certamente é o motivo pelo qual Bernie Sanders, em 2015, considerou as fronteiras abertas uma proposta digna dos irmãos Koch, bilionários que financiam vários Think Tanks libertários e conservadores. A imposição seletiva de barreiras em certos setores acaba por ser um privilégio, exercido por aqueles com maior poder, que frequentemente beneficiam, como consumidores, dos setores com poucas barreiras.
É A DIREITA QUEM QUER MAIS IMIGRANTES
O grande álibi dos partidos da direita nacional são as alterações às leis da imigração em 2017, então criticadas por Pedro Passos Coelho como cedências à esquerda radical. O discurso passista, resgatado recentemente, é uma validação de que o diabo, que este profetizava estar para breve, acabou mesmo por chegar. A argumentação ignora que o número de imigrantes não aumentou exponencialmente depois da mudança da lei, quando o desemprego ainda era alto, mas apenas a partir do momento que o país atingiu níveis próximos do pleno emprego.
Na verdade, os governos liderados por António Costa mitigaram o aumento da imigração com suas opções políticas, mesmo que insuficientes, em torno da regulação do Trabalho. Em geral, as posições da direita parlamentar, foram contrárias a estas medidas.
Entre 2016 e 2024, o salário mínimo nacional subiu todos os anos. No seu conjunto, este cresceu cerca de 63% (mais de 350 Euros contabilizando 14 meses), o que corresponde a um aumento superior a 30% depois de ajustado à inflação. Os partidos da direita foram forças contrárias a essa trajetória, vaticinado sempre que um salário mínimo mais alto causaria desemprego. Em áreas como a restauração e a agricultura, dominadas por mão de obra estrangeira e baixos salários, o aumento do salário mínimo foi inequivocamente um travão à sua expansão. Esta política não causou desemprego, mas certamente reduziu a importação de mão de obra barata num contexto de pleno emprego. Já o pacote Mais Habitação, apresentado em 2023, mesmo limitado, criava contrapesos no setor do turismo com restrições ao Alojamento Local. Na oposição, sectores da direita classificaram o pacote de bolivariano. No poder, reverteu-o imediatamente e a inflação das casas voltou a uma trajetória de divergência com a União Europeia — com repercussões no custo de vida (em especial dos mais jovens) e na competitividade nacional.
Sem nunca o admitir, e em boa verdade também porque é raramente confrontada, as votações da direita na Assembleia da República mostram a defesa de um modelo de economia que exige cada vez mais mão de obra importada e barata. O retirar de direitos laborais e sociais para os imigrantes, promovendo uma sociedade mais estratificada também surge como um encobrimento dessa posição.
É aí que se encontra espaço à esquerda para a defesa de uma política que reduza a necessidade de mão de obra estrangeira, sem que tal seja um piscar de olho a quaisquer princípios xenófobos. Fundamentalmente, trata-se de lutar por um outro modelo de desenvolvimento. Nas últimas décadas, algumas das maiores divergências parlamentares entre o PS e os partidos à sua esquerda foram na área do Trabalho. Deliberadamente ou não, estes partidos estavam (entre outras coisas) a colocar um freio num tipo de economia cujo oxigénio é, em boa parte, a importação de trabalhadores baratos. Reconhecer estas dinâmicas não implica considerar que os imigrantes reduzam os níveis salariais na economia, até porque a grande regulação salarial nas áreas onde operam é feita pela via legal, através do salário mínimo nacional.
Do ponto de vista histórico, os processos bem sucedidos de modernização em economias capitalistas necessitaram que o capital fosse disciplinado, sendo forçado a investir em atividades mais sofisticadas e de maior risco. No leste asiático, uma importante peça do puzzle foram os processos de reforma agrária, que obrigaram os antigos latifundiários a procurar outras áreas a investir, como a indústria. No contexto português atual, o equivalente seria colocar um travão a atividades como o turismo, a agricultura e o imobiliário, em especial os seus componentes de menor valor acrescentado e mais dependentes de mão de obra barata.
Do lado do Trabalho, ainda existe margem para intensificar o processo de crescimento salarial dos últimos anos, forçando o capital a procurar setores e processos mais produtivos e inovadores. Como recordou João Ferreira, vereador da CDU, Portugal tem um nível salarial abaixo do espanhol, mesmo depois de ter em conta as diferenças de riqueza. Portugal produz menos 18% por habitante que Espanha, mas o salário mínimo é 27% mais baixo. Fechar esse fosso significaria um aumento do salário mínimo para 965 euros por mês (aumento de 95 euros). A regulação dos TVDEs e TukTuks, com um maior controlo do número de veículos em circulação, ou mesmo a expansão de transportes públicos (principalmente os noturnos), seria outro passo nessa direção.
Além da regulação do trabalho e do espaço urbano, existem outros instrumentos disponíveis que ficaram por utilizar como forma de arrefecer os setores económicos assentes na mão de obra barata. Do ponto de vista fiscal, a ferramenta mais óbvia e com efeitos imediatos é o ajuste das taxas de IVA. Portugal cobra uma taxa de IVA de 6% na hotelaria e de 13% na restauração. A redução do IVA da restauração, bandeira de campanha de Costa em 2015, teve um importante significado político, tendo-se tornado um símbolo do virar a página da austeridade dos tempos da Troika. Contudo, a economia hoje é muito diferente da que sofreu o choque da austeridade. O turismo tem crescido a um ritmo impressionante, com o aeroporto de Lisboa e outras infraestruturas do país a verem os seus limites testados. Aumentar a taxa de IVA, baixa face a vários dos países comparáveis, é uma forma de combater a proliferação do turismo, de canalizar mão de obra para outras áreas de interesse estratégico (p.ex.: a construção) e arrecadar milhões de euros para acelerar o investimento público e reforçar o Estado Social. Infelizmente, as modestas taxas turísticas parecem continuara ser a medida de eleição dentro do campo progressista.
Qualquer aumento de impostos com um objetivo disciplinador está sujeito a criar oposição entre a sociedade. Os setores diretamente afetados, na procura da defesa dos seus interesses, irão sempre anunciar o aumento do IVA como um cataclismo para a economia nacional e criador de uma vaga de desemprego. Este é um argumento familiar em todas as subidas do salário mínimo (aqui, aqui, aqui e aqui), e também quando o IVA do Golfe passou de 6% para 23%. Em ambos os casos, o desastre económico por via dessas medidas ficou por acontecer, mostrando espaço político para usar mudanças destas medidas fiscais como parte de uma agenda progressista.
Entre outros setores da sociedade, com diferentes graus de preocupação genuína, é expectável a acusação de que tais medidas coloquem em causa o direito das classes médias portuguesas em comerem fora de casa e de fazerem as suas merecidas férias. Se for estabelecido como uma prioridade política, o Estado tem formas de proteger os residentes de tais aumentos com instrumentos como o IVAucher. Ou seja, uma devolução parcial do IVA aos residentes fiscais, dentro de certos limites politicamente deliberados, é exequível, sem alterar o espírito da medida, direcionando-a face à procura turística vinda do estrangeiro.
HÁ MAIS VIDA PARA ALÉM DA ECONOMIA
Se a estrutura e a regulação da economia constituem o grande motor que define os níveis de imigração, estas dizem muito pouco sobre como esta pode promover objetivos políticos e sociais. No regime de imigração que agora está a ser alterado — em que a manifestação de interesse tinha um papel chave — são aplicados poucos critérios preferenciais de quem e como receber. Na prática, Portugal tem recebido um número desproporcional de trabalhadores jovens do sexo masculino, mão de obra associada a um maior vigor físico de setores como a agricultura e construção.
Em pouco anos, Portugal passou de ter mais mulheres que homens na faixa etária dos 20-34 anos (11 mil em 2015) para um défice de mulheres em 2023 (28 mil). O crescente desequilíbrio de género em países que têm recebido fluxos significativos de imigração — do Catar ao Canadá — torna evidentes as sérias limitações da promessa de um equilíbrio demográfico obtido por via da imigração. O inédito défice de mulheres jovens na sociedade portuguesa não deve ser desvalorizado como uma coincidência transitória, mas sim o reflexo de um regime de imigração cujo perfil demográfico não é tido em conta como uma prioridade.
Além disso, pontecial desconforto das populações face a grandes grupos de jovens do sexo masculino, independentemente do pais de origem, não pode ser desvalorizado. Basta ver como o futebol organizado ou as despedidas de solteiro — eventos que concentram muitos homens jovens — são percepcionados na sociedade. O Barómetro da Imigração captura este sentimento ao reportar que os portugueses veem mais vantangens em imigrantes que vivam em família e considera como mais desvantajoso imigrantes do sexo masculino.
Defender abertamente a seletividade na política de imigração tornou-se num terreno escorregadio para o campo progressista, com receios de deslize para o espaço de análise da direita mais radical. Embora os cuidados sejam mais do que compreensíveis, a bússola da extrema-direita não está em parâmetros políticos para definir a imigração, mas sim na subordinação aos desejos patronais e a criação de hierarquias étnicas e raciais.
Garantir o equilíbrio de género dentro da sociedade, ao incentivar a vinda de famílias, e mesmo a preferência por países específicos (quer seja por motivos políticos, como reparações históricas, ou a proximidade política) são elementos que convivem bem com uma política progressista. Caso contrário, os partidos à esquerda teriam-se oposto a medidas como o reagrupamento familiar ou aos vistos especiais para os países falantes de português. Ambas políticas deixam a descoberto uma verdade inconveniente: a manifestação de interesse foi um mecanismo eficaz para garantir mão de obra aos empregadores. Embora parcialmente positivo na medida que não prende os trabalhadores a um único patrão, foi limitado como forma de cumprir objetivos coletivos. Um modelo de imigração que promova um desequilíbrio demográfico para dar primazia às vontades patronais dificilmente pode ser a guia de um modelo de imigração desenhado pelos partidos de esquerda.
Pedro Nuno Santos chegou a ensaiar uma revisão à esquerda do modelo de imigração a defender para Portugal. O então líder da oposição perdeu uma oportunidade de ouro para apontar as verdadeiras limitações do regime de manifestação de interesse. Este surpreendeu o país ao afirmar que este regime já tinha cumprido o seu papel e tinha vários problemas. Mas em vez de argumentar que neste o Estado abdica das suas responsabilidades, delegando implicitamente a seleção de imigrantes aos empresários, e salientar as suas virtudes face a eventuais modelos da direita (vincular imigrante a um patrão), o ex-líder do PS optou falar em “efeitos de chamada” e de “cultura a ser respeitada”.
Se a direita portuguesa, no seu tango entre PSD e Chega, tem Orbán como um referencial de uma política de imigração de extrema-direita no quadro europeu, o governo espanhol pode servir o mesmo propósito no campo progressista. Os governos de Pedro Sanchez têm combinado uma política de aumentos substanciais do salário mínimo, uma revisão da lei laboral mais favorável ao Trabalho, freios no mercado imobiliário, e uma política de nacionalidade relaxada face a países politicamente definidos. A obtenção da nacionalidade espanhola (logo, todos os direitos, inclusive o voto) é possível em dois anos para os nacionais de antigas colónias e em apenas um ano para pessoas casadas com nacionais ou descendentes de espanhóis. Exatamente em contramão com o que foi proposto pelo governo de Montenegro.
Assim, através de dois grandes vetores, há espaço para um verdadeiro contraponto à política de imigração das direitas em processo de radicalização. Em primeiro, garantir o máximo de direitos aos imigrantes, com a definição de critérios geográficos (não étnicos e raciais) e demográficos que não sejam explicitamente definidos pelo patronato. Em segundo, medidas que afetem toda a economia no imediato, com travões às atividades de baixo assentes em mão de obra barata. Até porque, o modelo de imigração a emergir da nova configuração parlamentar mantém as “portas escancaradas”, desde que alguns direitos sociais e laborais não fiquem à entrada.
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"Garantir o equilíbrio de género dentro da sociedade, ao incentivar a vinda de famílias, e mesmo a preferência por países específicos (quer seja por motivos políticos, como reparações históricas, ou a proximidade política) são elementos que convivem bem com uma política progressista. Caso contrário, os partidos à esquerda teriam-se oposto a medidas como o reagrupamento familiar ou aos vistos especiais para os países falantes de português." A lógica deste pensameto é difícil de apanhar, os partidos de esquerda têm de ser favoráveis ao reagrupamento familiar por questões de direitos humanos elementares básicos, como o direito à família, que pode ser constituída por elementos do mesmo sexo como deveis saber. Este parágrafo resume talve o sumo deste texto onde parece faltar o mais importante, a perspectiva do trabalho, neste caso dos trabalhadores imigrantes. Como se fossem aqui meros instrumentos, como no capital, para "desenvolvimentos" económicos, desenvolvimentos para quem?
Pouco progressista esta análise, a não ser a explicitação da maneira de criar dois estados de direitos para trabalhadores, por parte da extrema direita, e desmascarar o seu discurso anti-imigrante