Mais do que o abandono é o crescimento disfuncional que alimenta o Chega
Importar a ideia de que a extrema-direita cresce em nos territórios desertificados não permite encontrar o caminho neste novo ciclo político
Face ao recente sucesso eleitoral do Chega, multiplicaram-se os apelos para procurar e ouvir o Portugal esquecido que se foi virando para a extrema-direita. Pouco dias depois, Alexandra Leitão, publicava a sua interpretação dos resultados eleitorais. A candidata a Lisboa pelo Partido Socialista falava de “territórios no sul e no interior do país muito desertificados, onde não há oportunidades de emprego nem cobertura de serviços públicos e que se sentem esquecidos pelo poder político”.
A ideia de um Chega que prospera num interior abandonado e em definhamento económico é tentadora e claramente inspirada noutros países. O caso mais conhecido talvez seja a antiga cintura industrial norte-americana (Rust Belt) que passou de bastião do Partido Democrata para Trump, após décadas de deslocalização e automação de empregos industriais. No caso polaco, as eleições presidenciais que se deram duas semanas após as legislativas em Portugal mostraram um país onde a parte leste, menos integrada no dinamismo económico das últimas décadas, alberga a extrema-direita. A popularidade do partido de Marine Le Pen em França, e o voto a favor da saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), alinham-se com esta ideia.
No entanto, o retrato da extrema-direita como um fenómeno das zonas económicas deixadas para trás deve de ser levado com reservas, até porque está longe de ser uma regra. Por exemplo, é no norte de Itália, com uma economia mais dinâmica do que a parte sul, que encontramos a extrema-direita mais consolidada. No Brasil a situação ainda é mais extremada. Na vitória de Bolsonaro em 2018, houve um claro recorte entre cidades mais ricas a favor da extrema-direita e as mais pobres a votarem no Partidos dos Trabalhadores. No caso português, devemos começar a subir pelo Tejo para entender em que realmente reside a força do Chega.
O INTERIOR ESQUECIDO AINDA DOMINADO PELO CENTRÃO
Ao sair de Lisboa pela A1, passando por Loures, é ao chegar a Vila Franca de Xira que encontramos o primeiro município onde o Chega ficou em primeiro nas eleições legislativas. Continuando a subir a orla do Tejo, o Chega também ganha no Cartaxo, em Benavente, Constância e Alpiarça. Em Santarém, capital do distrito, fica em terceiro lugar, logo atrás do Partido Socialista. A mancha do Chega só se dissipa depois de Abrantes, e não volta a ser vista ao longo da A23.
Para quem segue naquela que é conhecida como a autoestrada da Beira Interior, mais do que o enfraquecimento eleitoral do Chega, é notável que entramos num outro país, com menos tráfego, com uma autoestrada menos dotada de iluminação – em suma, mais abandonado, afastado da pulsão económica exercida pela capital do país.
Chegando ao distrito de Castelo Branco, os sucessos eleitorais do Chega perdem força e encontramos algumas das poucas vitórias dos socialistas a norte do Tejo. Neste círculo eleitoral, que historicamente tende para o PS, o partido de extrema-direita não ganhou em qualquer município. A Aliança Democrática vence o PS por quatro pontos percentuais, enquanto o Chega fica a mais de cinco pontos do PS.
Castelo Branco cumpre todos os requisitos do que seria um bastião socialista deixado ao abandono, logo pronto a abraçar a extrema-direita. Ficam por acontecer os grandes investimentos, como a barragem do rio Ocreza que constituiria o “Alqueva da Beira Interior”. O distrito enfrenta o envelhecimento e o declínio populacional há décadas; os pilares económicos da região como a indústria laticínia e a Universidade na Covilhã já foram instalados há muito e não beneficiaram de uma década de bonança. Ao contrário do distrito de Santarém, a distância face a Lisboa é um obstáculo face a tornar-se tanto um polo logístico que sirva a capital, como um dormitório periférico que seja diretamente afetado pelos altos preços do imobiliário na área metropolitana.
Para melhor compreender as vitórias do Chega devemos olhar para o dinamismo económico a sul do Tejo, onde se encontra o maior lago artificial da Europa.
A NOVA ECONOMIA A SUL
Ponte de Sor pode parecer apenas o nome de mais uma terra remota no distrito de Portalegre onde o Chega ficou em primeiro com cerca de um terço de todos os votos. Olhando mais de perto, a barragem do Montargil, que vai tornando-se um destino turisco, é emparelhada com o aeródromo do município (e a escola de aviação, mediatizada pelo caso dos filhos do então embaixador iraquiano) onde a Tekever, empresa portuguesa que recentemente passou a ser denominada de “unicórnio”, planeia fabricar a primeira aeronave portuguesa.
Mais para sul, Campo Maior é a casa da multinacional Delta, que continua a investir no município. A outrora casa do Partido Socialista, que contava com as simpatias do empresário Rui Nabeiro, também viu o Chega chegar ao primeiro lugar nestas eleições.
Continuando a descer pelo Alentejo, já nos distritos de Évora e Beja, temos a orla de um dos maiores investimentos públicos do Portugal democrático. Entre os municípios com contacto direto com a barragem do Alqueva, a revolução na produção agrícola do Alentejo, o Chega ganha quatro e os socialistas outros três.
Crucialmente, Sines, já do lado litoral do Alentejano, o grande polo industrial que remonta ao Estado Novo e plenamente acolhido durante os tempos de democracia, regista uma vitória do Chega - tanto os socialistas como a coligação liderada pelo PSD ficam a mais de quatro pontos percentuais. Sines está longe de ser um local abandonado. Apesar do fecho da sua central a carvão em 2021, este é o município onde se encontram empreendimentos como a grande refinaria de petróleo nacional; o porto de águas profundas que bate recordes de carga; o centro de dados cuja construção acabou por resvalar na queda do PS e agora é o orgulho dos sociais democratas; a futura fábrica de baterias da chinesa CABL; também é o ponto onde as aspirações de uma indústria do hidrogénio se concentram, entre tantos outros projetos. Vista de Lisboa como tão ou mais importante que muitas capitais de distrito, avançam a ligação via autoestrada a Lisboa e o corredor ferroviário de mercadorias a Badajoz.
Logo a sul deste polo industrial, Odemira, que preenche manchetes com a produção em estufas, também mostra uma vitória do Chega. Rumando até ao Algarve, em 2024 já podia ser notada a ligação entre o modelo de desenvolvimento da região - baseado no turismo e agricultura intensiva em água - e os resultados eleitorais do Chega. No entanto, as diferenças de padrões de voto nesta região são reveladoras. Nos municípios algarvios interiores, menos expostos ao modelo económico da região, o partido de André Ventura tem votações muito inferiores.
A margem sul da Área metropolitana de Lisboa, que interrompeu o processo em que o Partido Socialista paulatinamente se alojava no que outrora foram bastiões comunistas, foi a grande surpresa da noite eleitoral. Com o Chega em primeiro lugar no distrito de Setúbal, Palmela, a casa do orgulho industrial português da Autoeuropa, em conjunto dos municípios circundantes, soma vitórias ao Chega. O que é também um lugar de irradiação das dinâmicas da capital, destino do futuro aeroporto, em vias de receber a sua terceira ligação rodoviária a Lisboa, e em constante crescimento populacional, muito contribui para os seis deputados que a vitória do Chega rendeu no círculo de Setúbal.
Regressando ao centro do país, o distrito de Leiria regista as três vitórias do Chega mais a norte. Numa região historicamente dominada pelo PSD, o Chega conquista a Marinha Grande, Peniche e a Nazaré. Outrora ilhas do PCP (Marinha Grande e Peniche) e do PS (Nazaré) na região, a sua evolução económica também está longe da estagnação e do abandono. A Marinha Grande continua a ser uma das zonas mais industrializadas e dinâmicas do país. Os outros dois municípios, antes dependentes da pesca, foram transformados pela popularidade de Portugal como destino turístico internacional ligado ao surf.
SUBDESENVOLVIMENTO EXPANSIONISTA: A GEOGRAFIA DO CHEGA
As explicações de um Chega concentrado em zonas desertificadas não são isentas de méritos. Afinal, em 2019, quando André Ventura entrou no parlamento pela primeira vez foi no círculo eleitoral de Portalegre, onde obteve uma maior percentagem dos votos, e é nesse distrito onde continua a somar os melhores resultados. Na noite eleitoral, quando foi anunciado que o Chega tinha ganho o distrito de Portalegre, o deputado Pedro Frazão voltou à casa de partida e fez uma associação entre o voto no seu partido e a proximidade a comunidades ciganas. Apesar de traços inconfundíveis ao longo do seu percurso, o partido de André Ventura sofreu várias mutações ao longo dos anos que são o reflexo de alterações estruturais no país. O que tornou o Chega o segundo partido mais representado na Assembleia da República não foi o mesmo que ditou os primeiros sucessos.
Apesar dos bons resultados em todo o território, não é nas ruínas de um Portugal esquecido que o Chega se catapulta para a frente do sistema político, mas sim onde o (forte) crescimento económico é mais atrofiado, caótico e mesmo antipopular. O novo modelo de crescimento do pós-troika, em especial no pós-pandemia - assente na exploração agrícola, turismo e imobiliário, em especial em Lisboa e no Sul - lançou as sementes do descontentamento.
O ciclo de expansão económica tem sido pautado por serviços públicos em falta, transportes públicos sobrecarregados, metrópoles suburbanizadas e congestionadas. Crucialmente, marcado por um mercado habitacional asfixiante, fonte do aumento das pessoas em situação de sem abrigo e potencialmente de uma intensificação de problemas de toxicodependência - preocupações legítimas que acabam interpretadas como “sensação de insegurança”. Nas zonas de intensificação agrícola, como o olival intensivo que permite os recordes de exportação de azeite, a qualidade da água e do ar degradam-se. Além do aumento dos preços da habitação, o crescimento do turismo tem tornado mais caro e difícil comer fora de casa, as ruas mais caóticas e o acesso às praias cada vez menos universal - visto em fenómenos como o aluguer de cadeiras, o estacionamento pago ou a inacessibilidade do ferry entre Setúbal e Tróia.
Num período de baixas taxas de desemprego, em especial no pós-pandemia, grande parte dos novos empregos criados neste ciclo beneficiam pouco quem já vive e trabalha em Portugal, levando à importação de mão de obra. É duvidoso que os salários praticados nestas indústrias de baixo valor acrescentado tenham gerado uma grande pressão salarial sobre o resto da economia. É entre este subdesenvolvimento expansionista que a extrema-direita portuguesa do século XXI mostra o seu maior vigor.
Tal como o Bloco de Esquerda prosperou no início do século XXI entre os jovens que suportaram primeiro o desacelerar e depois a depressão da economia portuguesa, o Chega mostra-se mais capaz de penetrar entre quem inicia a vida adulta neste crescimento atrofiado. Uma crise de habitação que dificulta a capacidade de os jovens se emanciparem - em especial nas áreas metropolitanas e sem famílias para financiar um imóvel - parece ser o terreno onde o Chega prospera.
A “prosperidade” da economia nas condições presentes deve ser considerada o motor de crescimento da extrema-direita. As mudanças na economia portuguesa têm sido profundas e aceleradas, com crescimento do Chega a acompanhar essa evolução. Ainda assim, não sendo a realidade atual, tal não implica que este não possa prosperar num ambiente de estagnação ou contração económica, ou em zonas desertificadas.
O QUE HÁ A NORTE?
Dentro desta disfuncionalidade, o litoral norte de Portugal aparenta ser uma ilha de alguma normalidade. Mesmo sendo uma região historicamente de direita, o Chega tem mais dificuldades de penetração, ficando em terceiro lugar nos distritos de Braga, Porto e de Aveiro. Olhando para o desenvolvimento económico da última década, comparando com o sul do país, o crescimento a norte tem sido menos dependente do turismo e da exploração agrícola intensiva. Apesar das recentes dificuldades no setor do têxtil ancorado à indústria automóvel europeia, exemplos como a expansão da Airbus em Santo Tirso, a nova fábrica da Lufthansa em Santa Maria da Feira, e concentração de várias multinacionais em Braga (o município com o maior crescimento populacional e forte presença de população estrangeira) mostram uma modernização industrial.
As lições a tirar do eixo litoral norte são bipartidas. Por um lado, sem estar isenta dos problemas como a habitação e trânsito, esta zona pode dar-nos pistas de um modelo de crescimento mais funcional, menos vulnerável à extrema direita.
Do outro lado, embora mais resiliente, esta modernização industrial pode passar a sofrer as mesmas fragilidades observadas a sul e ser o próximo palco para a extrema-direita dar mais um salto eleitoral. Sem a capacidade de acomodar os custos de crescimento, essencialmente através do investimento público em infraestruturas - como por exemplo através da construção de transportes públicos que reduzam problemas de congestionamento - o crescimento industrial será vítima do seu próprio sucesso.
Fatores como a maior implantação de um catolicismo popular a norte também não pode ser descartada como como um tampão à extrema direita. As visitas ao santuário de Fátima por parte de Luís Montenegro e as aspirações de André Ventura a ser o quarto pastorinho mostram um terreno político contestado. Aqui, a investida que o Chega faz sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez também poderá ser um fator que usa para abrir terreno a norte. Sendo a extrema-direita especialmente forte no eleitorado mais jovem e digitalmente nativo - onde este movimento político é dominante - os supostos tampões históricos (tal como o antigo argumento sobre a memória do Salazarismo como barreira à extrema direita em todo o país) podem ser temporários.
Na véspera das eleições do ano passado, Marcelo Rebelo de Sousa fazia um discurso de apelo ao voto, altamente propagandístico, em que usava os 50 anos do 25 de Abril para afirmar que se fechava um ciclo da nossa História e que abria-se outro. Sem ser de todo o seu objetivo, as palavras do Presidente da República acabam por capturar o momento político: as mudanças das estruturas económicas e sociais do país estão a tornar os antigos alinhamentos políticos numa relíquia do passado. Não porque a economia estagnou, mas porque está a mudar depressa e não necessariamente para melhor. Mais do que revisitar interior esquecido e desertificado, talvez seja preciso reconhecer este facto em primeiro lugar.
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Um artigo muito interessante, mas com algumas falhas na revisão. Por exemplo, o concelho ribatejano chama-se "Constância" e não "Constança".
Tenho para mim que entre as causas da ascensão do Chega estão:
1) O aumento vertiginoso da desigualdade na sociedade portuguesa que é ostensivamente exposta por todo o lado e que provoca;
2) A proliferação de péssimos media e de jornalismo de baixo nível;
3) A reação adversa estimulada pelo outro diferente, que sempre houve, mas é agora mais aguda por força do grande afluxo de estrangeiros diferentes nos usos e costumes;
4) A falta de vergonha de um dirigente partidário em assumir o papel de amplificador do que o povinho pensa e sempre pensou (recordo a célebre expressão "do que isto precisava era de um Salazar em cada esquina!").
Just my two cents.