Lula, Presidente de Abril
É frequente dizer-se que o 25 de Abril começou em África. Este ano Lula da Silva, presidente do Brasil, retifica-o.
ALTOS CUSTOS EXIGEM ALTOS CONSENSOS
O arrancar da invasão Russa da Ucrânia foi acompanhada por um apoio musculado aos níveis diplomático, económico e militar por parte do Ocidente – isto é, Estados Unidos e seus aliados, em especial na Europa - à Ucrânia.
Em termos de valores, no caso dos Estados Unidos, os gastos chegaram aproximadamente a 115 mil milhões de dólares. Colocando em perspetiva, perto de 2% dos gastos por parte do governo federal dos EUA foram dirigidos à Ucrânia, numa alocação sobretudo para financiar o aparato militar do país presidido por Volodymyr Zelensky.
Apesar dos gastos não serem tão elevados para os parceiros Europeus, o apoio destes ao estado Ucraniano foi ripostado com uma quebra nas relações económicas com a Rússia, em particular com o fim do acesso ao gás siberiano. Olhando para dados macroeconómicos, o corte económico entre a União Europeia e a Rússia trouxe défices comerciais com poucos precedentes para Europa.
Além das consequências económicas, a perspetiva de uma guerra nuclear catastrófica passou a pairar.
Convencer a população de um qualquer país a aceitar estes custos não é uma tarefa trivial para qualquer pacote político. Se, por exemplo, em nome da Transição Energética os mesmo políticos defendessem um travão tão forte e repentino nas importações de combustíveis fósseis russos, a proposta seria imediatamente descartada. Olhando para o caso dos EUA, ao longo de várias guerras, observamos uma ou outra forma de censura como prática comum na condução dos conflitos.
ALTOS CONSENSOS EXIGIRAM ATAQUES
O apoio à Ucrânia foi feito sob um consenso político avassalador. Em grande parte, este foi conseguido através de ataques políticos contra aqueles que contestaram a ideia do escalamento da guerra como única opção para a paz, e reduzindo apelos às negociações de paz como apologia à Rússia.
O Economista estadunidense, Jeffrey Sachs – bem conhecedor e reconhecido no antigo bloco de leste, foi um dos principais conselheiros das reformas económicas na altura da transição da região para o Capitalismo – em maio de 2022 passou a tomar uma posição pública crítica do papel do Ocidente na Ucrânia, e rapidamente foi adjetivado de "putinista". Em Portugal, Rui Rio, quando ainda presidia o PSD, foi recebido com uma chuva de críticas. Longe de questionar o consenso de apoio militar à Ucrânia, apenas sugeriu que as sanções à Rússia deveriam ter em consideração as consequências económicas para a Europa.
Focando-nos no caso português, com uma larga distância para qualquer segundo classificado, o principal visado pelos ataques políticos foi o Partido Comunista Português.
Defendendo a sua posição com uma linha argumentativa que remonta no mínimo a 2014, o PCP seguiu uma linha de apoio dos Acordos de Minsk, que previam a paz depois da deposição de Viktor Yanukovych em 2014, e apontou para o papel dos Estados Unidos da América e aliados num escalamento de tensões que data desde o fim da União Soviética, em 1991, com a expansão da NATO a leste da Alemanha.
Imediatamente as posições do PCP tornaram-se assunto de primeira linha na imprensa nacional criando um clima de crispação que superou largamente a mera discordância com as posições do PCP.
Num espectro que veio de personalidades à esquerda como Ana Gomes, até figuras de extrema direita como Mário Machado, a quem as primeiras foram abrindo espaço, o tom de agressividade e a insinuação sobre o que era defendido ou não pelo PCP disparou. A posição de um partido com cinco deputados num parlamento de 230 passou a dominar a agenda mediática.
Em Setúbal, onde os comunistas são grande parte da governação CDU com um presidente do PEV, o facto de refugiados ucranianos serem recebidos por cidadãos de nacionalidade russa dominou a agenda mediática durante mais de uma semana. Depois da comoção inicial, o assunto acabou por se dissipar no esquecimento assim que se tornou claro que a indignação mediática foi desmedida e que esta era uma prática recorrente por vários pontos do país.
Entre várias figuras ligadas ao estado Ucrâniano, Pavlo Sadokha, presidente da Associação de Ucranianos em Portugal, com ligações à extrema-direita ucraniana, passou a equiparar a posição do PCP a xenofobia e ódio para com Ucranianos. O presidente da associação Refugiados Ucranianos, Maksym Tarkivskyy, sentiu-se suficientemente à vontade para questionar a própria existência do PCP, enquanto a embaixadora da Ucrânia criticou publicamente um partido do país no qual exerce funções.
A LUTA PELA LIBERDADE
A linha argumentativa nos espaços aliados dos EUA face à invasão da Ucrânia por parte da Rússia pode ser cingida às quatro linhas seguintes:
- A invasão não foi provocada por ninguém (a palavra unprovoked antecipa frequentemente war na comunicação social dos EUA);
- A luta dos Ucrânianos é a linha da frente da democracia a nível mundial;
- O caminho é uma escalamento na Ucrânia, armando o exército Ucrâniano
- Falar em negociações de paz e cessar fogo corresponde a apologia pró-russa.
Foquemo-nos no segundo ponto, aquele em que a confusão ideológica é mais explícita e que tem dominado a agenda mediática com a visita de Lula da Silva. Como bem demonstrado por Branko Milanovic – muito longe de ser um apologista do regime russo – esta é contrafactual.
“Esta teoria ingénua é popular, em primeiro lugar, dada a sua simplicidade. Não requer quaisquer conhecimentos de história, nem da Rússia nem da Ucrânia, não requer qualquer conhecimento sobre o comunismo, nem sequer requer qualquer visão (ou até conhecimento) das razões da separação das federações comunistas. É uma teoria baseada em ignorância, e suportada por ignorância. Em segundo lugar, tal teoria ingénua é nos interesses dos círculos liberais e de direita mais belicistas do Ocidente (...)”
LULA QUEBRA O CONESENSO
O percurso político de Lula da Silva – desde as detenções enquanto sindicalista nos anos 80, à lufada de ar fresco que simbolizou nos seus primeiros mandatos presidenciais e o recente regresso à presidência do Brasil – representa uma luta pela democracia.
A vitória eleitoral de Lula, na eleição do ano passado, sobre Jair Bolsonaro foi geralmente aclamada e reconhecida como um progresso. Até nos EUA, com o presidente Joe Biden, desejoso de expor a vitória de Lula como um recuo do Trumpismo que, em vários aspetos, se assemelha ao Bolsonarismo, a vitória de Lula foi reconhecida sem ambiguidade.
Por isso mesmo, agora que emerge a posição de Lula crítica em relação ao prolongamento da guerra e que aponta o dedo aos EUA e os seus aliados, o mundo em que a fação “pró-democracia” vive dissolve-se. Para quem vive no mundo de Ana Gomes, o fator explicativo para tal opinião apenas pode cingir-se a uma condição de saúde de Lula.
Entre o comentariado português, os pecados que apontam a Lula passam pela incoerência, o relativismo moral, falta de genuinidade e até um pôr-se a jeito para ser recebido por protestos.
Lula está longe de ser o único ator político que emerge apelando a uma descalada na guerra e a um olhar que vá além da Rússia no que toca às origens da mesma. O Papa Francisco – insuspeito de afiliações comunistas ou à Moscovo da ortodoxia cristã – sucessivamente carrega uma mensagem similar à do presidente brasileiro, mas esta foi sendo ignorada entre os adeptos da escalada bélica.
O choque com Lula dos que amalgamam a guerra na Ucrânia com uma luta pela liberdade é alimentado pelos timings. A visita deste a Portugal está adjacente às celebrações do 25 de Abril de 1974 – data incontornável de um ponto de vista do progresso e liberdade –, e a sua vitória eleitoral, que foi batizada com a invasão de Brasília, ainda é fresca. Ao mesmo tempo, à direita do PSD existe uma pressão para reclamar o manto político do bolsonarismo em Portugal, numa campanha que iria colocar ataques a Lula no centro, por qualquer motivo que fosse possível.
Assim, personagens como Ana Gomes, que chegou a fundamentar a sua campanha presidencial na luta contra a extrema-direita, agora dançam ao som da música de figuras de extrema-direita como André Ventura para atacar Lula da Silva.
Jair Bolsonaro chegou a defender posições não radicalmente diferentes das de Lula em relação à guerra na Ucrânia. Neste caso, era fácil justificá-las com uma afinidade deste com o autoritarismo de Vladimir Putin. Quando se tratava do PCP, a caricatura de uma afinidade baseada num saudosismo dos tempos de um bloco comunista sediado em Moscovo e uma perversão colada aos “comunistas que comem criancinhas” funciona para explicar a posição do partido.
Com Lula, as dificuldades de chegar a uma explicação coerente são tais que as posições ao centro confundem-se com as de extrema-direita.
IMPERIALISMO E DEMOCRACIA
Samuel Huntington – longe de ser um anti-imperialista, antes pelo contrário – afirma: “O Ocidente ganhou o mundo, não através da superioridade das suas ideias ou valores (...) mas pela superioridade em aplicar violência organizada. Os ocidentais frequentemente esquecem este facto; os não ocidentais nunca o esquecem.” Certamente esta ideia não é alheia a Lula.
Olhando para o que se passou desde a primeira vez que este tomou posse em 2003, foram os EUA e vários aliados que deixaram um rasto de invasões e estados falhados. Desde o percorrer de meio mundo para invadir o Afeganistão e o Iraque, ao apoio a dissidentes no mundo árabe (quando úteis para se livrar de opositores como Muammar Gaddafi na Líbia) e ao patrocínio de vários golpes de estado na América do Sul e em África, entre outros. Lula entende bem que a democracia não é o monopólio dos Estados Unidos da América e dos seus aliados.
Lula não foi alheio a estes acontecimentos. Já em 2003, depois de recusar o convite do então presidente dos EUA, George W. Bush para participar na invasão do Iraque, não hesitou em chamar desta “um erro” e recentemente recusou o envio do envio de munições para a Ucrânia citando a guerra iniciada em 2003.
Se tomarmos em atenção o que é dito fora do círculo de aliados próximos dos EUA, vemos que a posição de Lula não é uma novidade. O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, já apelou a um cessar-fogo, o que causou mal estar com o seu grande vizinho a norte. Narendra Modi, da Índia, apelou ao diálogo e à diplomacia. A África do Sul defende um cessar de hostilidades. A Indonésia aposta na neutralidade e em apelos à paz.
O espanto daqueles que agora se indignam com a posição de Lula é o espanto daqueles que apenas têm prestado atenção às opiniões dos EUA, países da Europa e aliados dos americanos no pacífico. O tremendo esforço para alimentar a guerra na Ucrânia exigiu criar para estes um mundo paralelo em que os únicos dissidentes são o PCP e Lula da Silva; foi tomada como representativa da opinião internacional a posição de países que juntos constituem menos de 20 por cento da população mundial.
Receber Lula da Silva é para lá de coerente com o 25 de Abril. Uma política externa brasileira não subjugada ao interesse do Ocidente e dos seus aliados está com as liberdades consagradas pelo 25 de Abril. Não uma liberdade em sentido abstrato para servir a lei do mais forte, mas para consagrar o que ainda hoje se encontra no Ponto 2, do artigo 7.º da Constituição da República Portuguesa:
“Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança colectiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos.”.
É frequente dizer-se que o 25 de Abril começou em África. Este ano Lula da Silva, presidente do Brasil, retifica-o.
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E honestamente, não sei quem é que ainda apela ao respeito dos Acordos de Minsk, considerando que já foram muitas as personalidades que acabaram por admitir que os países Ocidentais os tinham negociado de má-fé, desde o Hollande à Merkel, com o intuito de dar tempo à Ucrânia de se armar contra a Rússia (não devemos esquecer que os acordos começaram a ser negociados in extremis frente ao desastre de Debaltsevo para o exército ucraniano, e com algum cinismo da parte russa, que achou que um conflito "gelado" seria a melhor situação, já que impossibilitaria a entrada da Ucrânia na NATO).
E honestamente, não sei quem é que ainda apela ao respeito dos Acordos de Minsk, considerando que já foram muitas as personalidades que acabaram por admitir que os países Ocidentais os tinham negociado de má-fé, desde o Hollande à Merkel, com o intuito de dar tempo à Ucrânia de se armar contra a Rússia (não devemos esquecer que os acordos começaram a ser negociados in extremis frente ao desastre de Debaltsevo para o exército ucraniano, e com algum cinismo da parte russa, que achou que um conflito "gelado" seria a melhor situação, já que impossibilitaria a entrada da Ucrânia na NATO).