PT, uma história | Celso Rocha de Barros | Crítica Literária
PT, uma história não é o primeiro livro que explora o trajeto do Partido dos Trabalhadores. Isso não faz dele menos relevante para entender a origem do partido e os desafios do terceiro governo Lula
Liberdade e Luta (Libelu), Convergência Socialista, Democracia Radical, A Articulação. Gráficos com taxas de inflação, número de greves e índices de industrialização da economia Brasileira. PT, uma história, recorre a estas organizações e indicadores económico-sociais, muitas vezes na mesma página, para descrever a história do Partido dos Trabalhadores (PT). Esta obra não é um livro escrito por um ex-militante da base com o intuito de conhecer alguns dos ídolos políticos da sua juventude. Isso até pode ter alguma verdade, mas resumir ‘PT, uma história' a isso, seria um desserviço.
A origem e evolução do PT nunca passou despercebida entre intelectuais e historiadores e Celso Rocha de Barros não é o primeiro autor a propor-se a este exercício. O historiador marxista Eric Hobsbawm, simpatizante do partido, classificou o PT de o ‘um exemplo tardio de um partido trabalhista e movimento socialista de massa clássico’. Perry Anderson classificou o PT como ‘o único partido de massas novo criado a partir do movimento sindical desde a Segunda Guerra’. Escrito às portas da terceira vitória presidencial de Lula, o autor consegue capturar quase todo o trajeto do PT: dos movimentos de base até à valsa petista na institucionalidade brasileira. O PT provavelmente é o único partido remotamente social democrata que caiu com estrondo nas últimas duas, e voltou ao poder, depois de ter sido dado como morto por muitos.
A história narrada por Celso Rocha de Barros por mais de 350 páginas não é um exercício de apontar heróis e vilões que fazem a história sozinhos, moldando a realidade à sua volta. Antes pelo contrário. ‘PT, uma história' é, em última instância, uma análise de como as condições materiais do Brasil moderno (por isso que inclui vários gráficos) moldaram a fundação do Partido dos Trabalhadores, seus sucessos e derrotas.
A TROIKA FUNDADORA DO PT
O PT foi fundado em 1980, na ressaca das grandes ondas de greves na cintura industrial de São Paulo, onde Lula teve um papel importante como líder sindical, num movimento que ficou conhecido como o Novo Sindicalismo. Apesar do nome e do contexto histórico, o PT não foi criado como um mero braço institucional de um grupo de sindicalistas. O partido emerge como uma coligação entre este grupo, católicos progressistas com uma forte presença nas bases sociais - fortemente inspirados na teologia da libertação e pelas experiências dos padres operários - e outros grupos de opositores da ditadura militar, mais associados à intelectualidade ou à luta armada das décadas anteriores, com uma forte presença trotskista.
Nos seus primeiros anos de fundação, não era óbvio que esta coligação via o PT como um projeto de poder. Antes da formação do partido, o movimento de Lula chegou a considerar fundar um partido com quadros associados uma política mais institucional, como Fernando Henrique Cardoso (FHC, que posteriormente derrotou Lula em duas eleições), mas acabou por rejeitar a ideia de se tornar o parceiro sindical, e provavelmente minoritário, de uma grande coligação democrática com figuras de centro. Se durante a ditadura, o MDB (partido de FHC nessa altura) era mais um veículo de oposição institucional, do que um partido com consistência ideológica (chegou a lançar candidatos do PCdoB nas suas listas) e um projeto de poder, alguns dentro do PT defendiam que o partido recém formado se tornasse uma espécie de ‘MDB sem burguesia’. O projeto do PT recolhia simpatias do exterior mas nasceu órfão. O seu basismo colocava-o longe o suficiente da Social Democracia europeia de 70-80, totalmente institucionalizada; suas alas trotskistas e católicas eram um tampão natural a qualquer proximidade do Socialismo Soviético. Nos seus primeiros anos, o PT acabou por oscilar entre os Sandinistas da Nicarágua, o Solidariedade de Lech Wałęsa e os sindicatos dos metalúrgicos da Alemanha e Suécia.
Celso Rocha de Barros faz questão de reforçar a importância das condições políticas, económicas e sociais na década de 70 para explicar o (nada natural) alinhamento entre movimentos católicos, sindicalistas e trotskistas. A ditadura militar nunca foi tão dura com os movimentos católicos progressistas como foi com outros movimentos sociais. O Brasil era um país esmagadoramente católico, e a igreja católica tinha apoiado o golpe militar de 1964. Perseguir padres e organizações comunitárias seria um plano arriscado, mesmo para uma ditadura militar. Esta conjugação de fatores deu espaço para que os católicos progressistas conseguissem criar organizações de base quase inexistentes no Brasil militar.
O projeto desenvolvimentista, iniciado na Era Vargas e continuado até ao final da ditadura militar, levou a uma rápida industrialização e urbanização do Brasil, em especial do sudeste. Este processo alimentou-se do êxodo rural do nordeste, cujos migrantes ficaram conhecidos por retirantes. Luiz Inácio da Silva foi um desses retirantes. Como milhares de outros, fez formação industrial e juntou-se ao novo proletariado brasileiro, na cintura industrial paulista. Mais tarde juntou-se ao movimento sindical. No final da década de 70, o projeto de desenvolvimento industrial brasileiro dava os primeiros sinais de fragilidade, com alta inflação e desaceleração económica. Foi nesse contexto de expectativas frustradas (não de total caos económico) que Lula (visto com desconfiança por vários setores da esquerda), já no seu segundo mandato como líder sindical e outros sindicalistas agitam as estruturas da ditadura militar, acabando com uma década de inverno sindical.
Veteranos deste movimento de greves tornam-se importantes figuras do partido, de líderes de municípios até à Presidência da República. A influência do movimento sindical da década de 70 é tão forte no PT, que o terceiro governo de Lula ainda inclui um outro veterano do novo sindicalismo, o Ministro do Trabalho Luiz Marinho.
Enquanto o Novo Sindicalismo mobilizou milhares de operários, o regime militar iniciava a abertura política. Entre outras medidas, o governo passa a lei de anistia, em 1979, que permite o regresso de exilados políticos. Algumas antigas lideranças da pré-ditadura continuaram o seu projetos políticos. Leonel Brizola, maior liderança da esquerda brasileira no exílio, passou anos a criar laços com a social-democracia europeia, regressava para reerguer o velho trabalhismo com o seu recém-fundado PDT (fundado em Lisboa). Outros militantes da esquerda, vários tinham chegado a participar na luta armada, viram no PT a sua nova casa.
Nas entrelinhas, o autor descreve um conjunto de grupos com interesses comuns que competem internamente através da mobilização e organização popular, sem dar grandes espaços para uma política entrista, sem qualquer base social.
O PARTIDO SOMBRA DA ‘DEMOCRATIZAÇÃO PELO ALTO’
Apesar da popularidade do novo sindicalismo, as primeiras eleições para o PT foram trágicas, em parte devido ao sistema eleitoral ainda influenciado pela ditadura (voto vinculado). Em 1982, o partido teve 0.02% dos votos e ganhou apenas dois municípios. Um deles foi Diadema, na cintura industrial de São Paulo, um dos principais palcos das greves dos anos anteriores, elegendo um líder sindical. Lula conseguiu apenas 10% na eleição para Governador de São Paulo. Naquele momento, um pacto entre elites (‘democratização pelo alto’), liderado por políticos ligados aos partidos legais durante a ditadura militar, levava a dianteira. O PT parecia estar destinado a ser um pequeno partido agitador de esquerda radical, que tentava fazer a ‘democratização por baixo’.
As suas primeiras experiências municipais alimentam a ideia que o PT, ainda com um forte componente basista, não estava preparado para liderar executivos e manter a sua identidade. O partido teve o episódio insólito de ter o seu vice-prefeito de Diadema a liderar uma invasão ao edifício municipal da cidade, por estar insatisfeito com a política do seu executivo. As tensões entre o partido e as suas administrações locais levaram a que os dois primeiros prefeitos da história do PT tenham saído do partido, ainda antes de terminarem o seu mandato.
Na segunda metade da década de 80, o partido participa ativamente no processo constituinte, com 16 deputados, mas mantém uma distância estratégica dos partidos da ‘democratização pelo alto’. A maioria dos deputados, sob indicação do partido, absteve-se na votação indireta para Presidente da República, dando voz ao movimento por eleições diretas. Aqueles que não cumpriram com a indicação do partido foram expulsos. Aquando da votação do texto final da Constituição da República, de uma natureza bastante progressista (ex: criação de um sistema universal e gratuito de Saúde) dado o peso dos partidos conservadores na Constituinte e os rumos da política mundial na década de 80, o PT da radicalidade e agitação decidiu votar contra apresentar a sua própria proposta. Ironia do destino, décadas mais tarde, o PT passaria a apresentar-se como o grande defensor e protetor desta mesma constituição, contra muitos daqueles que aprovaram o documento.
O primeiro governo civil pós-ditadura, com amplo apoio dos partidos da 'democratização por cima’, não consegue conter a inflação com o seu Plano Cruzado. Este plano passa rapidamente a ser visto como um mero artifício para congelar a inflação temporariamente e garantir uma grande vitória ao governo, na eleição para governador, em 1986. O Brasil mergulha novamente na hiperinflação, e o PT, como pequeno partido agitador, torna-se atrativo para muitos dos desiludidos com a jovem democracia brasileira. Em 1988, o PT teve a sua primeira grande vitória eleitoral, iniciando um ciclo em que passou a controlar importantes executivos municipais como São Paulo e Porto Alegre.
Celso Rocha de Barros explica que ao contrário do início da década, onde a política local petista foi um palco de guerras internas e de executivos sem um forte legado, a estratégia municipal mudou. Inspirado pelos comunistas italianos, e ao entender que o Brasil não se tornaria num grande parque industrial, o partido passa a usar o poder local como vitrine para seu projeto político e social, onde testa ideias discutidas pelos seus intelectuais. O partido consegue, com sucesso, cunhar o termo ‘o modo petista de governar’. Nesta fase é criado o primeiro orçamento participativo do mundo, algumas políticas progressistas na área dos transportes públicos e é ensaiado o Bolsa Família, que se tornaria o porta-estandarte dos governos Lula. O autor apresenta uma lista de políticas municipais de sucesso mas não faz um verdadeiro balanço destas experiências e os motivos pelos quais o partido perdeu a sua base em várias das suas cidades vitrine, ao longo dos anos,.
No plano nacional, o início da década de 90 é um período em que o PT para além de se manter distante dos partidos da 'democratização pelo alto’, usa o processo de impeachment do Presidente Collor para criar uma marca de partido ético comprometido com o combate à corrupção.
A ERA DA ARTICULAÇÃO E A VALSA PETISTA NO PLANALTO
No período em que o PT desenvolvia o seu ‘modo petista de governar’ em varias cidades, Lula sofreu três derrotas em eleições presidenciais. Celso Rocha de Barros dá especial importância para a primeira e para a última. Na primeira eleição, em 1989, Lula e o PT finalmente ganharam o estatuto de maior partido da esquerda, ao terem mais meio milhão de votos que Leonel Brizola, tirando o líder do PDT do segundo turno. Segundo o autor, a incapacidade de Brizola em construir alianças em estados chaves (São Paulo e Minas Gerais) e a falta de uma base popular sólida tiraram-lhe a chance de ser Presidente do Brasil, além dos 21 anos de ditadura. O veterano do velho trabalhismo tinha a expectativa de criar a sua política a partir da presidência, uma estratégia política que os petistas viriam a adoptar na passagem do milênio. No segundo turno, Lula conseguiu importantes apoios mas o autor defende que o partido ainda não estava preparado para dar os passos necessários para chegar à presidência: faltava-lhe um programa completo de governo; e a base do PT ainda não estava disponível para alargar o seu leque de alianças com o principal partido da 'democratização pelo alto’, o MDB.
Celso Rocha de Barros apresenta-nos a eleição de 1998, que era vista como perdida à partida, como o início do processo que levou à vitória de 2002. Com a queda da União Soviética, alguns dos setores mais radicais do PT (Democracia Radical, de José Genoino) entram num processo de revisão ideológica e aproximam-se da recém-criada Articulação (conhecida como a 'tendência antitendencia’ ou dos ‘petistas petistas’) , uma tendência que junta o novo sindicalismo de Lula com José Dirceu. Eleito presidente do partido em 1995, Dirceu é-nos apresentado como uma figura incontornável no sucesso petista dentro da institucionalidade. Grande articulador das várias tendências internas do partido e o principal rosto (para o bem e para o mal) do processo de ‘profissionalização’ do PT, que inclui as práticas de financiamento de campanha dos partidos de poder, que o PT criticou durante anos. Segundo FHC, Dirceu entregou um partido a Lula. Celso Rocha de Barros descreve a eleição de 1998 como o momento em que Lula sinaliza o rompimento com o basismo do partido. O futuro presidente ameaça desistir da sua candidatura em reação a uma decisão do diretório do partido no Rio de Janeiro, que colocava sua coligação em risco. Naquele momento, Lula mostrou-se disposto a mergulhar nas profundidades da institucionalidade brasileira para ser presidente da República.
Quando o partido finalmente via uma chance de comandar o Brasil, a conjuntura mundial não era favorável para partidos de esquerda. O período neoliberal e a entrada da China para a OMC pareciam colocar o último prego no caixão de qualquer projeto de reindustrialização e de uma política remotamente Keynesiana. Celso Rocha de Barros explica, elegantemente, que quando os partidos sociais democratas europeus romperam com a sua matriz originária para governar, no pós-guerra, tinham o Keynesianismo como modelo natural a adoptar. Nos anos 2000, com a terceira via a todo o vapor, não havia um ‘modelo natural’ para um partido de origem operária e agitadora como o PT.
Se o PT nasceu sem partidos irmãos, no final na decada de 90 o partido parecia ter encontrado no Partido Socialista Francês (PSF) um irmão adoptivo. Ao contrário dos Trabalhistas britânicos de Blair, ou dos Sociais Democratas Alemães de Schröder, que abraçaram apaixonadamente a terceira via, os Socialistas franceses viam-se presos no dilema da globalização e desindustrialização. Além disso, o quadro institucional que o PSF enfrentava tinha algumas parecenças com o ‘Presidencialismo de coalizão’ que o PT aguardava no congresso. Jospin - um ex-trotskista, que entrou no PSF numa estrategia de entrismo - era Primeiro Ministro pela Esquerda Plural, coligação que incluia comunistas e outros partidos de esquerda, que se via obrigado a “coabitar” com Chirac, um Presidente de direita. Em perspectiva, o complexo legado do executivo de Jospin, que inclui medidas clássicas de um governo de terceira via neoliberal (privatizações e reduções de impostos) com algumas vitórias materiais para a classe trabalhadora (redução do horário de trabalho para 35 horas e expansão do sistema de saúde) parece um presságio dos governos Lula.
No início de 2002, Jospin sofreu uma derrota humilhante na eleição presidencial francesa. Ao contrário do ‘seu irmão adoptivo’, Lula acaba por ganhar a sua primeira eleição meses mais tarde. O PT rompe com a estratégia das eleições anteriores e apresenta um discurso moderado e conciliador. O ‘partido sem patrão’ coloca um empresario, de um partido de direita tradicional, como candidato a vice-presidente. Na frente económica, Lula promete continuísmo e apresenta ‘a carta ao povo brasileiro’, que nada mais é que uma declaração de intenções, em economês, para acalmar os bem nervosos ‘mercados’.
Lula ganha no segundo turno, com 61% dos votos, no entanto, a bancada do PT acaba com menos de 20% dos deputados na Câmara dos Deputados, consequência das peculiaridades do sistema eleitoral criado na transição democrática. Celso Rocha de Barros relembra que, justiça seja feita, o (ainda agitador) PT opôs-se a este sistema eleitoral no processo constituinte.
A reeleição de Lula e o término do seu segundo mandato com 87% de aprovação não foram uma jornada suave. Os primeiros anos do governo Lula foram particularmente difíceis e a oposição aguardava que Lula se tornasse no Jospin ou no Wałęsa brasileiro. O governo viu-se forçado a fazer aquilo que tanto criticava nas administrações anteriores: montar acordos com partidos situacionistas fisiológicos (operados por Dirceu), alguns deles herdeiros do regime militar. Esta prática acabou por resultar em denúncias de corrupção em torno do governo, em especial o 'Mensalão' que fragilizou o governo Lula e o PT. Nesses anos, o PT foi perdendo a sua reputação da década de 90, de partido anticorrupção e altamente ético.
Na área económica, o alto continuísmo da política do governo anterior (chefiado por Antonio Palocci) também criava tensões, em especial dentro do próprio partido. Estes conflitos atingiram o seu auge com a reforma do sistema de pensões (‘previdência’) que levou à expulsão dos deputados petistas que votaram contra (posteriormente fundaram o PSOL). Celso Rocha de Barros não se esconde nos fatos históricos e dá a sua opinião de forma frontal. Para o autor, independentemente da opinião que se tenha sobre esta reforma, ou sobre o aburguesamento do PT na institucionalidade, o partido não tinha outra alternativa que não a expulsão destes deputados. Caso contrário, o PT teria perdido uma das suas principais características, que ainda hoje o distingue da esmagadora maioria dos partidos brasileiros: ser um partido verdadeiramente nacional, e não num mero veículo de distribuição de fundos de campanha para um grupo de deputados sem qualquer projecto político comum.
Se no meio do seu primeiro mandato, Lula era dado como um futuro ex-Presidente, Celso Rocha de Barros mostra novamente que foram mudanças nas condições materiais da população brasileira que levaram o primeiro governo da história do PT a dar a volta. Se a entrada da China na OMC tinha acabado com qualquer sonho de reindustrialização, esta criava uma outra oportunidade para o Brasil, um boom de matérias-primas. O rápido crescimento e desenvolvimento chinês necessitava de importar soja, frango e milho para seus trabalhadores; e minérios e petróleo para sua indústria. O Brasil tinha condições para fornecer tudo isso e acelerar seu modelo económico assente na exportação destes bens. Simultaneamente, os vários aumentos do salário mínimo e os programas sociais do governo começaram a dar frutos. Com esta combinação de matriz exportadora e política social nasce o Lulismo, um modelo político-económico de conciliação de classes, também conhecido por sua lógica de ‘ganha-ganha’. Sem um Brasil industrial com operários suficientes para formar uma base política sólida, o partido consegue criar uma nova base de apoio entre os mais pobres da sociedade, a partir da cadeira da presidência (o plano de seu rival Brizola, em 89). Devido à estrutura de classes do Brasil, o PT nunca conseguiu criar um bloco sólido na burocracia de estado como os partidos sociais democratas europeus. O autor não explora em detalhe a relação do partido com a burocracia do estado.
Com o motor económico do Brasil a regressar ao campo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o debate da reforma agrária ganharam maior importância na sociedade brasileira. Uma das maiores falhas de ‘PT, uma história' é não explorar de forma suficiente o papel deste movimento (autónomo mas aliado) para a base popular do PT num Brasil desindustrializado. O MST é frequentemente apresentado pelos opositores do PT, de forma absurda, como um de braço político-terrorista do partido, uma espécie de FARC petista. Os resultados da eleição de 2022 sugerem que o autor não deu a importância merecida ao movimento. Na eleição para governador do Rio Grande do Sul, o ‘sem terra’ Edegar Pretto não chegou ao segundo turno por apenas dois mil votos; e seis outros ‘sem terra’ foram eleitos pelo PT.
O livro descreve a sucessão de Dilma como um momento em que o partido está totalmente esgotado. Os escândalos dos primeiros dois mandatos deixam o PT sem lideranças óbvias, com Dirceu e Palocci forçados a sair da primeira linha, e Lula escolhe a dedo uma sucessora sem autonomia partidária mas com ‘obra feita’. Uma outra interpretação pode ver Dilma como uma tentativa de alcançar um equilíbrio impossível entre i) colocar um quadro técnico do novo PT institucional-burocrático; ii) tentar pacificar as bases com uma figura com sérias credenciais no combate contra a ditadura, ao contrário da esmagadora da nova geração petista, e comprometida com um projecto desenvolvimentista e de reindustrialização do país; iii) para além disso, alguém com a coragem de refundar o partido, do ponto de vista ético, a partir do Palácio do Planalto. O desafio pode parecer impossível, ou mesmo absurdo, mas o primeiro mandato de Dilma aponta para uma tentativa de alcançar este equilíbrio.
Os quase seis anos dos governos Dilma são essencialmente descritos como um conjunto de decisões macroeconomicas, maioritariamente erradas aos olhos de Celso Rocha de Barros, combinados com uma ‘faxina ética’. Após uma onda de protestos em 2013 e o início da Lava Jato em 2014, os partidos da 'democratização pelo alto’ decidiram derrubar Dilma e o PT. Este diagnóstico contém vários componentes relevantes do mandato de Dilma mas o balanço do autor em relação ao legado de Dilma parece altamente influenciado pela hegemonia cultural do Bolsonarismo na política brasileira. Por exemplo, o livro foca-se no bloqueio de Dilma ao ‘kit anti-homofobia’ , que posteriormente foi falsamente apelidado de ‘kit gay’ por Bolsonaro e seus seguidores. No entanto, o autor não se foca na importância a política como o ‘Mais Médicos' (revogado por Bolsonaro, antes da pandemia) e da ‘PEC das domésticas' (em que Bolsonaro foi um dos poucos deputados a votar contrariamente) no processo de consolidação da nova base do PT, que voltou a eleger Lula em 2022.
‘PT, uma história' está longe de ser o tipo de livro em que os atores políticos controlam o rumo da história. Ainda assim, Dilma e Rui Falcão (Presidente do PT durante o período do impeachment) implicitamente acabam por ser apresentados como os heróis improváveis do PT, na última década. Os dois, por meios diferentes, acabaram por não deixar o partido cair na tentação de fazer um grande acordo institucional para se manter no poder por mais dois anos, cujo preço seria provavelmente perder grande parte da sua base e identidade.
Ao criar confrontação com algumas das principais figuras do fisiologismo político brasileiro, antes da queda, o impopular governo austeritário de Dilma consegue fazer os mínimos para não perder definitivamente a base do partido, que se mobiliza contra o impeachment.
Olhando para trás, o governo Dilma não fez uma 'faxina política'. Foi um processo acidental de quimioterapia a todo o sistema político, onde o Bolsonarismo surgiu no meio das ruínas. O PT, ao ter iniciado este procedimento primeiro, e com menos anos de vícios, foi o partido que recuperou melhor da quimioterapia acidental de Dilma.
O surgimento do Bolsonarismo não deu tempo para o PT se reorganizar na oposição e rever a sua relação com as suas bases e movimentos sociais. Seis anos depois do impeachment, o PT foi chamado a liderar um novo ‘acordo pelo alto’ que defenda a Constituição brasileira. Exatamente aquilo que o PT se opôs na década de 80.
REFLEXÃO PÓS-LEITURA: O SUCESSO DO MODELO PT FORA DAS SUAS FRONTEIRAS
Celso Rocha de Barros mostra ao longo do livro que a fórmula fundadora do PT foi um modelo de sucesso. Caso contrário, provavelmente nem teria escrito o livro. Talvez a maior prova do sucesso do modelo de partido esteja numa das suas dissidências, o PSOL.
O PSOL não foi nem a primeira nem a única dissidência do PT. Do ponto de vista eleitoral, tem sido a mais bem sucedida e a que mais se aproximou do modelo original do PT. O partido beneficiou de decisões políticas (ou erros) que tornaram o PT (e também o PDT) insignificantes num dos maiores colégios eleitorais do Brasil, o Rio de Janeiro.
Ao longo dos seus 18 anos de existência, o PSOL criou um projeto com diversas semelhanças ao PT das décadas de 80 e 90. Uma multiplicidade de tendências coabitam e tentam crescer através da oposição feroz a executivos (tanto nacionais como locais), trabalho de base em movimentos sociais e tentar criar alternativas no poder local.
Por um lado, Marcelo Freixo (ex-PT e saiu do PSOL em 2021) e Marielle Franco (assassinada em 2018) são figuras incontornáveis da oposição ao establishment político, económico e criminal do Rio de Janeiro. Por outro lado, o percurso político de Guilherme Boulos realça a importância dos movimentos sociais na estratégia do PSOL de tentar conquistar vitrines de poder, a nível municipal.
Boulos surge como uma liderança do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto - movimento social pelo direito à habitação e reforma urbana, que na sua ação política ocupa imóveis desocupados - que tentou conquistar o governo da cidade de São Paulo, em 2020. Apesar da derrota, Boulos teve mais do dobro dos votos que a candidatura do PT. Em parte, o PSOL atropelou eleitoralmente o PT através do seu próprio legado: Luiza Erundina, a candidata a vice de Boulos, e a primeira prefeita da história do PT em São Paulo.
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