Fábricas de Diplomas são Espaços Antidemocráticos e Estéreis
Com duas traduções de Branko Milanović abordamos duas tendências gémeas nas Universidades: a asfixia destas como espaços democráticos e a sua produção em massificada de conformismo.
As últimas semanas têm sido marcadas por protestos estudantis em várias universidades nos Estados Unidos da América em defesa da causa palestiniana. Estes movimentos têm sido brutalmente reprimidos pelas forças de segurança, e por vezes milícias, com o aval de reitorias.
No nosso entendimento, estes acontecimentos devem ser enquadrados numa tendência autoritária de despolitização nos campos universitários, tanto nos Estados Unidos como na Europa. Gradualmente, as universidades vão perdendo o seu papel de um espaço radicalmente autónomo, em que se valoriza a aprendizagem, o debate e a reflexão.
Como tal, decidimos traduzir dois textos do economista Branko Milanović - uma das nossas principais referências, que a República teve o privilégio de entrevistar no ano passado (aqui) e escrever uma crítica a um dos seus livros (aqui). No primeiro texto escolhido, publicado em 2019, foca-se no percurso social dos economistas nos dias de hoje, o que é um reflexo natural de uma universidade cada vez mais estéril. No segundo artigo, publicado este mês, Milanović faz uma reflexão sobre o papel da padronização - tornando-se organismo cujo objetivo é maximizar os seus produtos - das universidades e as suas respostas aos protestos.
Apesar de serem textos focados nos Estado Unidos, a análise de Milanović é cada vez mais próxima da realidade nacional. Casos como as detenções policiais de activistas pela justiça climática na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa no ano passado, e a mais recente notícia que a Nova School of Business and Economics “ambiciona ter mais autonomia para competir nos rankings” são reflexos deste movimento global.
Queremos agradecer ao Branko Milanović por nos ceder o direito de republicação. Eventuais erros na tradução são exclusivamente da nossa responsabilidade.
Esperamos que gostes.
VIDAS NAO EXEMPLARES, BRANKO MILANOVIĆ (19 DE JUNHO DE 2019)
Recentemente li, mais por acaso do que por propósito, vidas curtas de vários economistas da atualidade. O que me impressionou foi a sua simplicidade. As vidas pareciam currículos. De facto, não havia praticamente nenhuma diferença entre os seus currículos e as suas vidas (tanto quanto eu pude perceber).
As vidas (ou seja, os CV) apresentavam-se tipicamente assim. Licenciou-se numa universidade muito prestigiada como o melhor do seu curso; teve muitas ofertas de universidades igualmente prestigiadas; tornou-se professor assistente em X, professor de carreira em Y; escreveu um artigo fundamental sobre Z quando tinha W anos. Fez parte de um ou dois painéis governamentais. Mudou-se para outra universidade de prestígio. Escreveu outro artigo fundamental. Depois escreveu um livro. E depois ... isto ia continuando. Poderia criar um modelo único e introduzir apenas o nome do autor e os títulos dos artigos, e talvez apenas ligeiras diferenças de idade para cada um.
Perguntava-me: como é que pessoas que viveram vidas tão aborrecidas, a maior parte das vezes num ou dois países, com o conhecimento de, no máximo, duas línguas, tendo lido apenas literatura numa língua, tendo viajado apenas de um campus para outro e, talvez, de um a estância de verão para outra, podem ter coisas significativas a dizer sobre as ciências sociais, com todas as suas lutas, corrupção, conflitos, guerras, traições e batota. Se fossem físicos ou químicos, isso não teria importância. Não é necessário ter uma vida interessante para compreender como se movem os átomos, mas talvez seja necessário para compreender o que move os seres humanos (comparemos com Giambattista Vico).
É possível ter uma vida aborrecida e ser um cientista social de primeira linha? Até certo ponto, provavelmente sim. Podemos ser muito inteligentes e perceber como as pessoas se comportam em condições que nunca experimentámos - nem ninguém que conheçamos. Não posso dizer que seja impossível. Mas penso que é improvável: porque faz parte da natureza humana, por muito inteligentes que sejamos, compreender certas coisas ou olhar para aspectos diferentes e novos de uma questão, apenas quando nós próprios enfrentamos o problema. Penso que todos nós já passámos por isso. Confrontados teoricamente com um determinado problema, podemos dar uma resposta perfeitamente razoável e coerente e até argumentar bem as escolhas. Mas depois, se formos confrontados com o mesmo problema na nossa própria vida, rapidamente descobriremos que essa resposta bem fundamentada estava apenas parcialmente correta. Não teve em conta uma série de questões secundárias, muitas condições e restrições que, no caso abstrato, ignorámos, assumimos ou, muito provavelmente, nunca pensámos. Ou nunca imaginámos.
As vidas organizadas e aborrecidas são um privilégio das sociedades ricas e organizadas. Todos nós (talvez exceto quando temos 25 anos) desejamos ter uma vida assim. Mas são também vidas muito limitadas: o leque de emoções e de escolhas que experimentamos é reduzido. Talvez queiramos ter como professores de ciências sociais pessoas que tiveram de beber veneno para defender um ponto de vista (Sócrates), ou que foram presas e torturadas (Maquiavel), ou que foram executadas por ordem de uma assembleia política (Condorcet), ou banidas e mortas por um regime totalitário (Kondratieff); ou aqueles que tiveram de fugir dos seus governos e reinventar-se (Marx), ou entrar numa política incendiária (Weber), ou migrar para outra língua e continente (Schumpeter, Hayek, Kuznets, Leontieff), ou experimentar as emoções de prazeres proibidos (Keynes).
Mas se a nossa vida é um currículo, será que podemos compreender as escolhas humanas e a natureza humana - uma condição prévia para ser um grande cientista social? Ao colocar esta questão, não estamos a perguntar se indivíduos bem comportados em sociedades organizadas e ricas podem realmente produzir descobertas nas ciências sociais. Ou será que as suas lições ficarão limitadas às sociedades ordeiras e ricas e às pessoas organizadas e aborrecidas, e não se estenderão ao resto do mundo? Por outras palavras, para usar a expressão de Plutarco, será que precisamos de vidas exemplares para obter grandeza nas ciências sociais?
AS UNIVERSIDADES COMO FÁBRICAS, BRANKO MILANOVIĆ (4 DE MAIO 2024)
Vi, e li, muitos casos em que a polícia acabava com protestos nas universidades, onde os estudantes se manifestavam. A polícia entrava em ação pela ordem de autoridades descontentes com os oásis de liberdade criados pelos estudantes. A política chegava armada, espancava os estudantes e acabava com os protestos. A administração da universidade ficaria do lado dos estudantes, invocava "a autonomia da universidade" (ou seja, o direito de não ser policiada), demitir-se-ia ou seria afastada. Este é o padrão habitual.
A novidade, para mim, na atual vaga de manifestações pela liberdade de expressão nos Estados Unidos é que foram as universidades a chamar a polícia para atacar os estudantes. Pelo menos num caso, em Nova Iorque, a polícia ficou perplexa por ter sido chamada e achou que era contraproducente. Podemos compreender que esta atitude dos administradores possa acontecer em países autoritários, onde estes podem ser nomeados pelo poder para manter a ordem nos campus. Nesses casos, por serem funcionários públicos obedientes, apoiariam a polícia na sua atividade de "limpeza", embora raramente tivessem autoridade para a chamar.
Mas nos Estados Unidos da America, os administradores das universidades não são nomeados por Biden, nem pelo Congresso. Por que razão atacariam então os seus próprios estudantes? Serão indivíduos malévolos que gostam de bater nos mais novos?
A resposta é: Não, não são. As administrações das universidades estão apenas a cumprir a função errada. Estas não consideram que o seu papel é aquele que as universidades detêm historicamente, ou seja, tentar transmitir à geração mais jovem valores de liberdade, moralidade, compaixão, auto-abnegação, empatia ou qualquer outra coisa que seja considerada desejável. Hoje em dia, o seu papel é serem um diretor executivo de uma fábrica que se chama universidade. Estas fábricas têm uma matéria-prima, chamada de estudantes, e que transformam-nos, em períodos anuais regulares, em diplomados. Por conseguinte, qualquer perturbação nesse processo de produção é como uma perturbação numa cadeia de abastecimento. Tem de ser eliminada o mais rapidamente possível para que a produção possa ser retomada. Os estudantes que se formam têm de ser "produzidos", os novos estudantes têm de chegar, têm de receber propinas, encontrar novos mecenas, e assegurado mais financiamento. Os estudantes, se interferirem no processo, têm de ser disciplinados, se necessário pela força. A polícia tem de ser chamada a intervir, a ordem tem de ser restabelecida.
Os administradores universitários não se interessam por valores, mas sim pelo produto final. O seu trabalho é equivalente ao de um diretor executivo da Walmart, CVS ou Burger King. Utilizarão a conversa sobre valores, ou "ambiente intelectualmente desafiante", ou "discussão vibrante" (ou o que quer que seja!), tal como descrito num artigo recente do The Atlantic, num habitual discurso promocional e performativo que os gestores de topo das empresas reproduzem. Não que alguém acredite em tais discursos. Mas é uma regra de etiqueta. É uma hipocrisia amplamente aceite. A questão é que esse nível de hipocrisia ainda não é totalmente comum nas universidades, porque estas, por razões históricas, não eram vistas exatamente como fábricas de salsichas. Era suposto produzirem pessoas melhores. Mas isso foi esquecido na corrida às receitas e ao dinheiro dos doadores. Assim, a fábrica de salsichas não pode parar e a polícia tem de ser chamada.
Podes consultar os textos originais de Milanović abaixo:
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas, fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
Se gostaste do que leste, apoia-nos. É simples e não te vai custar um cêntimo: subscreve e partilha a nossa newsletter e os nossos artigos. Esse é o maior apoio que nos podes dar.