O mito da emigração fiscal
Argumentar que a carga fiscal causa emigração apenas revela o contexto social onde os interlocutores da direita vivem.
Instalou-se entre a direita portuguesa o discurso de que os impostos são um fator decisivo para a emigração, em especial a dos jovens qualificados. Ultimamente, Luís Montenegro deu entrevista à SIC em que defende a tese e Carlos Guimarães Pinto defendeu a ideia no Twitter.
Ora, olhando para o que nos números nos dizem, vemos fatores que demonstram a falsidade do argumento:
1. Os que pagam mais impostos em Portugal (isto é, mais ricos e qualificados) não emigram em mais intensamente. Se a emigração hoje é mais formada do que aquela de décadas como a de 60, reflete o perfil da população portuguesa, em geral mais formado. Se quisermos ir ainda mais longe nos argumentos que se focam nos jovens, boa parte destes aufere baixos rendimentos e está nos escalões mais baixos do IRS;
2. O nível de taxação sobre o trabalho em Portugal não é significicativamente superior (chega a ser inferior) ao dos parceiros europeus;
3. O grande motor das ondas de emigração é o desemprego. Apenas se quisermos amalgamar os períodos da governação PSD-CDS do início da década passada dos “enormes aumentos de impostos” com os períodos de desemprego em massa, podemos associar a emigração à taxação do trabalho.
A questão fica: porque é que a direita insiste em repetir este contra facto?
Em primeiro lugar, num cenário em que o PS governa tão à direita, existe carência de argumentos políticos para se justificar como alternativa governativa. Transfigurar o discurso sobre a emigração e jovens num discurso de redução de impostos (para os mais ricos) surge como uma boa solução comunicativa. Assim, mascara-se a luta de vários setores da direita pela redução de impostos a uma franja mais rica da população numa causa com alguma dignidade social.
Em segundo, é reflexo do contexto social em que os dirigentes de direita e os media seus interlocutores vivem. É lhes fácil imaginar a sobrinha que foi para a Bélgica tirar o doutoramento, o colega de faculdade que sempre sonhou trabalhar num dos Hedge Funds característicos de Londres ou antigo vizinho que percebeu que só um trabalho na hotelaria do Dubai poderia permitir-lhe comprar o velejador com que sempre sonhou.
O desempregado que se tornou talhante em França, o fotógrafo que teve de se mudar para a Alemanha para ter um contrato de trabalho não precário ou a jovem que poupa para um mestrado a limpar retretes na Suíça não entram no seu universo social.
O alheamento dos dirigentes de direita não se resume a só um assunto, com José Miguel Júdice a vincar que vive no universo em que os jovens não dispensam uma garagem para viver.
Se quisermos um caso de emigração em massa de uma camada qualificada, encontramos os enfermeiros, onde a grande onda migratória da década passada aconteceu não devido a aumentos de impostos, mas devido aos cortes na contratação pública na época dos “cortes na gordura no estado”.
Ou seja, um discurso a pensar nos mais ricos propagado pelos mesmos.
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