If Books Could Kill: O podcast que destrói os piores livros do mundo
Neste podcast, Hobbs e Shamshiri combatem o legado nocivo que vários livros trouxeram à discussão pública. As obras de Economia estão na linha da frente.
O jornalista Michael Hobbes e o advogado Peter Shamshiri não são estranhos ao mundo dos podcasts. Em 2022, lançaram juntos o “If Books Could Kill” (Se os Livros Pudessem Matar) com o objetivo de desconstruir livros que não só são maus, mas que moldaram grande parte do discurso no mundo Ocidental. Não se limitam a ler, investigam o contexto dos autores, sempre com uma boa dose de humor. Num registo semelhante, talvez neles inspirado, os autores do Jovem Conservador de Direita lançaram em Portugal o podcast “Livros da Pi*a”.
Com um reportório de muitos livros que incluem na categoria de “Livros de Aeroporto”, Hobbes e Shamshiri entraram num embate contra a convenção de que o intelectualismo e o rigor andam sempre de mãos dadas.
Numa lista de maus livros bem conhecida, e sem grandes surpresas, boa parte são sobre Economia. No episódio de lançamento, o livro examinado é o “Freakonomics”, lançado em 2005 e cujo sucesso levou a spin-offs (um segundo livro, um documentário e um podcast com mais de uma década). Como descrito por Hobbes, a ideia do livro é simples: um economista à margem do mainstream procura as verdades inconvenientes que a sociedade precisa de ouvir.
As duas premissas falham redondamente, como demonstra a origem dos autores de “Freakonomics”. O economista do duo, Steven Levitt, vem da Universidade de Chicago (bastião da hegemonia neoliberal) e o outro, Stephen Dubner, vem do jornal New York Times. Quanto às verdades inconvenientes exploradas em “Freakonomics”, não vão muito além de racionalizações das ideias do costume através de linguagem económica, que têm mais a haver com promover políticas que favorecem os mais fortes do que o bem estar geral (com doses de racismo à mistura). Por exemplo, para explicar os rendimentos mais baixos que os negros obtêm pelos mesmos trabalhos, apontam que o problema está nos nomes que os pais escolhem para os filhos.
Com uma dose do que os podcasters chamam de “Ted-talkização” da sociedade, os autores assumem o mantra de afirmar que as suas conclusões, ao contrário da sabedoria convencional, são baseadas em dados estatísticos. Pôr em causa outras áreas de pensamento é prática comum. Ao longo de todo o livro, os usos indevidos dos números, por vezes a roçar a fraude, são uma constante.
O impacto do livro foi tal que surgiu uma vaga de publicações com o propósito de reparar o dano causado pelas falsas conclusões propagadas por Freakonomics (como esta). Em 2005, o livro podia ser considerado fora do mainstream na sua forma - o que levou a que o seu modelo fosse copiado por outros -, mas o seu conteúdo era o pensamento dominante do costume.
Isto é um ponto comum com os outros livros que são criticados no podcast. Nas posições de arrogância assumidas, basta usar dados para ter razão, não importa de que forma. Enquanto procuram fugir da ideologia, num estilo que Portugal passou a ser chamado de “desempoeirado”, os autores embrulham-se na ideologia como ninguém.
Numa ideia que se repete em episódios mais à frente, os podcasters fazem questão de assinalar o público entre o qual os livros singraram. Boa parte das vezes, os fãs das obras criticadas vão além de procurar sentir-se inteligentes enquanto defendem o interesse próprio; também procuram uma personalidade rebelde enquanto assumem novas roupagens para ideias tão velhas como o tempo. Geralmente são sujeitos qualificados, que apreciam obras intelectuais, mas com uma queda para estarem politicamente errados em quase tudo. Não é por acaso que estes trabalhos são apelidados de livros de aeroporto: em poucas páginas dão uma roupagem intelectual ao pensamento e aos preconceitos de classes mais abastadas que fazem as suas vidas em viagens aéreas.
Na lista de outros livros notáveis examinados pelos podcasters está “Rich Dad Poor Dad”, ou, com o título que o fez popular no topo de várias livrarias portuguesas, “Pai Rico Pai Pobre”. Nessa publicação que promete ensinar como gerir finanças pessoais, Robert Kiyosaki começa por apresentar um imbróglio de histórias sobre a sua vida com muitas narrativas deixadas por acabar (muitas fruto de uma imaginação pouco fertil e de daddy issues).
Nas partes finais do livro, os esquemas de como se esquivar aos impostos são apresentados como sabedoria. Ao observarem a vida de Kiyosaki, os autores do podcast descobrem alguém que passou tempo demais em seminários de “como ficar rico”. Aplicando o que os seus antigos professores faziam (em vez do que diziam), Kiyosaki lançou um livro memetizando as aulas que assistiu enquanto aluno, e, aí sim, tornou-se rico. Recentemente, Kiyosaki provou o mérito dos seus ensinamentos financeiros ao estar em cenário de falência iminente, sendo que a única barreira entre este e a liquidação financeira é: “se eu for à falência, o banco vai à falência”, um conselho difícil de generalizar para quem lê os seus ensinamentos.
Noutro episódio do podcast, o livro examinado é “The 4-Hour Workweek”, dentro do género de “Pai Rico Pai Pobre”. Neste, os podcasters dissecam o argumento de que, quando um livro promete decisões individuais para uma vida financeiramente desafogada, as únicas propostas funcionais são alguma forma de parasitismo.
Até à data, um único livro ocupou dois episódios do podcast: “Nudge” de Cass Sunstein e do, entretanto prémio Nobel da Economia[1], Richard Thaler. Como em muitas obras trazidas ao podcast, este livro é apresentado com ideias com que qualquer pessoa decente consegue concordar. Neste caso, um nudge (empurrão) é introduzido como algo positivo, ao conseguir que as pessoas façam boas decisões (por exemplo, comer fruta em vez de doces ao almoço), que em simultâneo são feitas de livre vontade, sem recorrer a proibições. Apesar de não ser assinalada pelos podcasters, esta fórmula de introdução leve resulta bem quando a expectativa é o leitor ficar-se pelas primeiras páginas.
No entanto, à medida que o livro se aprofunda, o descarrilamento é brusco. O conceito de nudge rapidamente passa a definir tudo e nada ao mesmo tempo. Uma plasticidade que permite que tudo o que se gosta seja um nudge e, caso contrário, seja excluído da definição – uma forma elaborada mas inútil de dizer que se gosta de coisas boas e não se gosta de coisas más.
Na deriva intelectual do livro, a privatização do casamento é apresentada como solução para contornar a oposição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo; para baixar os custos com cuidados de saíde, é proposto poder-se abdicar do direito de processar por negligência médica; políticas que melhoram a qualidade ambiente são críticadas por serem se parecerem “aos planos soviéticos de cinco anos”. Sem grande cerimónia, o livro degenera para um ultra-liberalismo primário.
Uma das estatísticas mais conhecidas e publicadas em “Nudge” é sobre a doação de órgãos. Segundo os dados, nos países em que os cidadãos são doadores de órgãos por defeito (nos quais Portugal se inclui), as doações de órgãos são muito maiores do que nos países em que é necessário inscrever-se. Assim, surge a conclusão de que assumir o primeiro modelo é melhor para os sistemas de saúde das sociedades.
Enquanto ser dador por defeito pode contribuir para as doações de órgãos, afunilar as discussão sobre o assunto nessa medida ofusca os fatores essenciais. Os podcasters mencionam o caso de Espanha, que mudou para o primeiro modelo. Contudo, essa mudança foi acompanhada por um forte investimento público no sistema de saúde.
Ou seja, se pequenas mudanças no modelo de doações oferecem uma narrativa de “um simples truque” que melhora a vida de muitas pessoas, não é nesses “simples truques” que devemos depositar as nossas esperanças. Desenvolvimento, monitorização e investimento, muitas vezes públicos, são o que explica os sucessos. Num contexto de falta de investimento e de planeamento público, a contribuição dos podcasters é oportuna para evitar que os debates sejam dominados pelos “simples truques” tecnocráticos que se substituem a uma agenda de política pública.
No final do episódio sobre “Nudge”, a carreira de Cass Sunstein na administração de Barack Obama é analisada. Hobbes chega a afirmar que está convencido que este autor do livro é o “anticristo”.
Entre outros livros dissecados pelo podcast, encontram-se títulos notáveis sobre política ao nível internacional como “The World is Flat”, de Thomas Friedman, “The End of History”, de Francis Fukuyama. Um outro livro, e um dos livros mais lidos nas faculdades norte-americanas, é o “The Clash of Civilizations”, de Samuel Huntington. Outra aparição notável é o “The Art of the Deal” de Donald Trump.
Enquanto Michael Hobbes e Peter Shamshiri têm colhido criticismo por apenas procurarem crítica e humilhação gratuita, a verdade é que não hesitam em reconhecer que alguns dos livros, apesar de fracos, não estão na mesma escala de outros arrasados no podcast, e até conseguem demonstrar alguma simpatia.
O valor do podcast eleva-se quando, além de oferecer discussões sobre livros, enquadra os seus argumentos e premissas nos discursos das últimas décadas. Quanto aos livros demolidos no podcast, dado o dano intelectual que muitos trouxeram e que persiste, os esforços do podcast If Books Could Kill são mais do que bem vindos.
[1] Como manda o bom senso, convém sempre mencionar que o prémio Nobel da Economia não é um prémio Nobel no sentido puro, mas algo estabelecido mais tarde em memória de Alfred Nobel pelo Banco Central da Suécia.
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
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Desculpem lá vir para aqui fazer de nazi da gramática, mas diz-se "por omissão" e não "por defeito". De qualquer maneira, bom artigo, vou explorar esses prodcasts.