Not Thinking Like a Liberal | Revisão Literária | Raymond Geuss
Sem rejeitar o conceito de liberdade em si, Geuss não atribuiu grande valor a ancorar discussões sobre a sociedade em termos como mercados livres
Num estilo autobiográfico que condiz com um filósofo à beira da reforma, Raymond Geuss percorre o seu percurso de vida para explicar como se “escapou” de ser um liberal.
Não um liberal no sentido de partidos europeus que hoje advogam a expansão do neoliberalismo com um rosto moderno e cosmopolita, mas liberal num sentido mais abrangente: liberal que coloca a soberania do indivíduo como o fundamento da sociedade, geralmente acompanhado da democracia (liberal) e do capitalismo.
Apresentando o Liberalismo como algo que no tempo e no espaço se revela com várias formas, Guess rejeita o posicionamento de “Liberalismo ou Autoritarismo” – se o liberalismo muda de forma e feitio ao longo do tempo, porque razão a oposição a este se pode reduzir à força da autoridade?
A narrativa parte dos estudos num colégio interno católico próximo de Philadelphia. Geuss descreve as aulas da sua juventude em filosofia, línguas, tradução e estudos religiosos para explicar como nunca se sentiu cativado pelos méritos de conceitos de liberdade em sentido abstrato. Sem rejeitar o conceito de liberdade em si, não atribuiu grande valor a ancorar discussões sobre a sociedade em termos como mercados livres, liberdade de discussão e livre consentimento. Não se considerando hoje um católico, este credita a ilha intelectual na qual foi educado como o que, à partida, o “imunizou” ao liberalismo.
O livro segue os argumentos dos seus professores (muitos deles parte do clero refugiado da revolta derrotada na Hungria em 1956) que o ensinam a duvidar do indivíduo soberano. Segundo estes, nenhum ser humano pode ser totalmente independente; cada pessoa se encontra ligada a outras, em primeiro lugar às suas famílias e depois ao resto da sociedade. Eram vistos com suspeita a capacidade de cada um se autossustentar, a possibilidade natural de aceder ao seu verdadeiro eu e os meios para sempre saber o que é melhor para si mesmo. Numa linguagem mais metafísica, nenhum é independente de Deus; em termos de economês moderno, existem bens públicos.
Seguindo um fio condutor assente na religião, fazendo valer a posição com que o catolicismo se esgrimia contra o protestantismo, estes professores apontavam como um erro pensar o Cristianismo como uma teoria assente na leitura da Bíblia. Em vez disso, esta devia ser vista como um agrupamento de práticas e instituições construídas ao longo da história e assentes em crenças. Sola Scriptura – o ênfase da palavra na prática religiosa (que levou a tradução da bíblia para línguas correntes a antecipar-se em séculos no protestantismo) era vista como um falsa transparência, enquanto o catolicismo não fugia à possibilidade de pluralismo e disputas na hora da interpretação.
Após o colégio interno, Guess segue para os estudos de Filosofia Política onde, num registo laico, continua a sua rejeição do liberalismo. Em destaque surgem as interações com figuras como Robert Paul Wolff e Sidney Morgenbesser.
Wolff é o conhecido autor de In Defense of Anarquism e The Porverty of Liberalism, sendo o segundo uma crítica a John Rawls, figura de referência do liberalismo à esquerda. Em relação à Filosofia Moral de Oxford do século XX, Wolff criticava-a por resumir as suas faltas de consenso em duas questões éticas: qual o dever perante os animais e permissão ou não permissão de cometer suicídio.
Morgenbesser, notável pela capacidade de transformar conversas casuais em seminários filosóficos, enfatizava as limitações de analisar uma discussão apenas na base dos argumentos dos participantes. O compromisso com os argumentos, se estes são usados ou não como um guia de ação, o grau de dedicação a defendê-los; todas estas hipóteses (e alternância entre estas) devem ser tidas em conta.
Para fechar o fio autobiográfico, Geuss continua a sua narrativa de vida com o prosseguir dos estudos na Alemanha, onde interage com os trabalhos de Adorno, Marcuse, entre outros.
A estrutura do livro é ligeira para um livro de filosofia e consistente com a ideia que rejeita: a filosofia como uma disciplina de argumentos puros despida de elementos autobiográficos. Ao partilhar o seu percurso e experiência de vida, o ator espera transmitir melhor a sua mensagem.
Extrapolando para temas atuais, quando Daniel Oliveira liga a prática quase-religiosa dos seminários de Cristina Ferreira às igrejas envangélicas e contrasta-as com as tradições católicas, conseguimos melhor vislumbrar como os argumentos de Guess podem ser vistos como uma crítica ao capitalismo (que atua lado a lado com o liberalismo).
Além disso, os argumentos de Geuss convidam-nos a duvidar da divulgação de conceitos como literacia financeira como a fonte de bem-estar geral – levam-nos a interessar pelos processos sociais, aprendizagens e história que levam à popularidade do próprio termo.
Como um todo, Not Thinking Like a Liberal, ao desafiar o consenso do indivíduo soberano como motor do progresso, pode dar-nos pistas de como uma alternativa ao atual consenso neoliberal se pode construir.
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