Entrelaçada com os bloqueios e manifestações, existe uma discussão sobre qual deve ser a agenda para enfrentar a crise climática. Em círculos mais e menos académicos, com um forte ênfase em questões como classe e capitalismo, e muitas vezes de inspiração marxista, surge o que é geralmente chamado de Ecossocialismo. Apesar de conjugar o combate às alterações climáticas com as restantes políticas à esquerda parecer intuitivo, existem vários problemas que em nada são triviais.
Neste artigo, originalmente publicado no Spectre Journal, o geógrafo sueco Ståle Holgersen faz um levantamento, dividindo os argumentos em duas grandes escolas: o decrescentismo e o produtivismo. Levantando e analisando os argumentos de ambos os lados, Ståle tenta chegar a uma síntese do que devem ser as reivindicações para se construir um sistema alternativo que faça frente ao desafio existencial que se coloca às sociedades do século XXI.
Ståle Holgersen é professor associado de Geografia Humana na Universidade de Örebro (Suécia) e autor de “Against the Crisis”, que será publicado pela Verso em 2024.
Nem produtivismo nem decrescimento – notas sobre Ecossocialismo
O eco-marxismo e o eco-socialismo são assombrados por uma polarização entre um eco-modernismo socialista e o decrescimento.[1] A publicação de “Marx no Antropoceno”, de Kohei Saito, e o caos que se seguiu no Twitter, foi apenas combustível para esse fogo.[2] No entanto, por detrás do fumo, encontramos investigação e argumentos convincentes vindos de ambas as partes, e o eco-marxismo está entre os ramos mais inovadores do marxismo atual. Há muito a celebrar neste facto. No entanto, a crescente polarização entre o eco-modernismo socialista e o decrescimento é preocupante em muitos aspectos. As discussões teóricas estão muitas vezes repletas de conceitos indefinidos, leituras hostis e espantalhos argumentativos.
O fato de ambos os lados terem pontos fracos facilmente identificáveis só alimenta a polarização. As disputas são normalmente organizadas em torno de dicotomias - por exemplo, "a favor ou contra o crescimento" - que obscurecem mais do que esclarecem. Mais problemático ainda é o facto de a polarização produzir danos políticos, dificultando a luta de classes. Os dois pólos do debate têm atraído tanta atenção que alternativas mais produtivas dificilmente encontram espaço para respirar. Um movimento ecossocialista não deve ocupar-se com discussões sobre "crescimento", nem ter como ponto de partida o eco-modernismo ou o decrescimento. A luta de classes socialista na década de vinte tem de reconhecer que não podemos ter uma atividade económica infinita num planeta limitado, muito menos uma abundância infinita de coisas físicas - mas também não podemos mobilizar a classe trabalhadora fazendo do "menos crescimento" o ponto chave do nosso projeto. Felizmente para nós, não temos de escolher entre o eco-modernismo e o decrescimento.
DESPOLARIZAR A COMPLEXIDADE
O eco-modernismo socialista (doravante apenas "eco-modernismo") e o decrescimento são tradições multifacetadas e heterodoxas, difíceis de descrever através de definições frásicas. No entanto, constituem pólos distintos de um debate que está a atrair cada vez mais atenção. O primeiro campo defende que a industrialização moderna é sobretudo progressiva e tende a ser relativamente positiva em relação ao "crescimento". Chamaremos a isto eco-modernismo, mas é por vezes chamado produtivismo de esquerda ou prometeísmo e, nalguns casos, sobrepõe-se ao aceleracionismo.[3] O movimento de decrescimento é fundamentalmente uma crítica do crescimento infinito e do "desenvolvimento ocidental". As tradições representam assim dois pontos de partida muito diferentes para pensar e fazer política.
Poder-se-ia imaginar que os debates entre estas duas visões do mundo produziriam resultados úteis. No entanto, na maior parte dos casos, isso não acontece. Uma das razões é a natureza do debate. Se o ideal seria utilizar os melhores argumentos dos adversários para desenvolver os seus próprios argumentos, não é essa (ainda) a forma do debate. As críticas baseiam-se frequentemente em estereótipos e no argumento mais extremo da outra parte. Os decrescentistas criticam o "aceleracionismo" - indiscutivelmente a versão mais radical do eco-modernismo, associada a Paul Mason, Aron Bastani e outros - por acreditarem que as contradições dentro do capitalismo levarão automaticamente ao fim do capitalismo. Enquanto os eco-modernistas acusam os decrescentistas de romantizar as sociedades pré-capitalistas, uma afirmação que os decrescentistas têm consistentemente rejeitado. (Mas então entra Saito, argumentando que o próprio Marx imaginou o comunismo como uma espécie de "regresso" a sociedades não-capitalistas.[4])
Os eco-modernistas acusam os decrescentistas de apelarem a mais pobreza. Quando Matt Huber argumenta que uma "política de menos" se sobrepõe "perfeitamente a um foco neoliberal mais amplo na austeridade, que apela a todos nós para apertarmos o cinto "[5], os decrescentistas têm de explicar repetidamente que o decrescimento não é sobre ter menos dentro do sistema atual, mas sobre a criação de um sistema totalmente novo. Matthias Schmelzer, Andrea Vetter e Aaron Vansintjan argumentam, por exemplo, que o decrescimento não é o oposto do crescimento económico.[6] O decrescimento está principalmente relacionado com a redução do rendimento biofísico e com a redução de formas desnecessárias de produção e consumo nos países ricos - e não principalmente com a redução do crescimento económico. Especialmente não como medido pelo PIB. Quando Huber caracteriza o movimento de decrescimento como "austeridade revolucionária", trata-se, como refere Natalie Suzelis, de um espantalho.[7]
O fosso entre os eco-modernistas e os proponentes do decrescimento é alargado quando as discussões são organizadas através de dicotomias. Em “Alterações Climáticas como Guerra de Classes”, Matt Huber desenvolve o seu argumento exatamente através da criação de um conjunto de binários, sugerindo e esperando que escolhamos um lado em cada um deles. Queremos uma "política de menos" ou uma "política de mais"? Concentramo-nos na produção ou no consumo? Quem é o sujeito político que pode travar o aquecimento global: a "classe trabalhadora" ou a "classe profissional de gestão" (PMC doravante)? Devemos preocupar-nos com uma "ecologia proletária" ou com uma "política do conhecimento"?[8]
A complexidade necessária perde-se com estes binários rígidos. Quando se trata de uma política de "mais ou menos", é óbvio que precisamos de mais de algumas coisas e menos de outras; e ser contra a "política do conhecimento" esconde questões interessantes sobre os papéis dos diferentes tipos de conhecimento na mudança social. Se fosse forçado a escolher, eu concordaria que a produção é "mais importante" do que o consumo, se isso significar que é mais útil concentrarmo-nos em grandes investimentos do que no consumo individual. Isto não significa que o consumo não seja também extremamente importante, tanto do ponto de vista analítico como político. O binário também esconde discussões complexas sobre o consumo individual, coletivo e produtivo, o papel do consumo na consciência de classe e muito mais. Além disso, como é óbvio, o consumo e a produção não são duas esferas autónomas.[9]
A dicotomia central em que se espera que escolhamos um lado é se somos a favor ou contra o "crescimento". Mas será que estamos a falar de crescimento na utilização de recursos biofísicos ou materiais, na utilização de energia, nos potenciais humanos, na acumulação de capital, na PPC (paridade do poder de compra) ou no IDH (índice de desenvolvimento humano), como uma ideia puramente metafísica, ou como um aumento do PIB? Uma vez que o eco-modernista Leigh Phillips afirma que "o fim do crescimento" é sinónimo de "fim do desenvolvimento tecnológico, fim da ciência, fim do progresso, fim da busca aberta da liberdade - fim da história", não é de surpreender que veja os críticos do crescimento como tolos, se não mesmo como reacionários[10] em toda a linha.[10] Segundo os descrescentistas, em contraste, só os tolos ou os mal-intencionados poderiam não se preocupar com o facto de um recém-nascido de hoje envelhecer numa economia 18 vezes maior do que a que tínhamos no virar do milénio (com um crescimento de 3%).
Mesmo quando se limita o debate ao crescimento económico, há muitos aspectos a considerar. Um deles é a própria fonte do crescimento. Kate Raworth argumenta que a obsessão com o PIB tem sido utilizada para justificar desigualdades extremas de rendimento e uma devastação ambiental sem precedentes. Será que o crescimento é determinado pela forma como o medimos, ou será que resulta da acumulação de capital, como defendem Schmelzer, Vetter e Vansintjan? É digno de nota o facto de que mesmo quando os proponentes do decrescimento discutem a complexidade do "crescimento" (ver, por exemplo, Kate Raworth), e quando os processos subjacentes são revelados (ver, por exemplo, Schmelzer, Vetter e Vansintjan), a análise, no entanto, avança frequentemente com o "crescimento" como conceito central.[11]
De seguida, surge a relação debatida entre a degradação ecológica e o crescimento económico: Será possível uma dissociação relativa, absoluta ou necessária entre o crescimento económico e o aumento da pressão ambiental? Além disso, há disputas sobre as ligações entre capitalismo e crescimento, em que a escola da “Economia do Steady State” prevê uma variante do capitalismo em que a população, o stock físico/riqueza e a utilização dos recursos naturais não aumentam, enquanto a economia continua a progredir tecnológica e eticamente. Isto contrasta fortemente com o movimento mais radical de decrescimento.[12] Tornando o quadro mais complexo, a posição dos "agnósticos do crescimento" representa uma posição mais complexa do que a dos que apoiam ou se opõem ao crescimento a priori. Mas o problema, em última análise, não é o facto de ser difícil tomar uma posição nos debates. É antes o facto de o "crescimento" ser a questão errada.[13]
Em vez da dicotomia "a favor" ou "contra" o crescimento, precisamos de debates críticos sobre quais os sectores, locais e indústrias que devem ter mais atividade económica e quais os que devem ser encerrados. A criação de novos "empregos verdes" ou de infra-estruturas sustentáveis resultará, de facto, num aumento do crescimento económico (medido por um aumento do PIB) a curto prazo, o que, obviamente, não pode ser um argumento contra essas políticas. Estas são questões complexas, mas um movimento ecossocialista que procure mobilizar-se para além do nicho dos círculos intelectuais tem de dar respostas concretas e específicas a este tipo de questões.
A QUESTÃO DO PROGRESSO NO SÉCULO XXI (POR VIA DO SÉCULO XIX)
Intimamente relacionada com a dicotomia crescimento/decrescimento está a questão de saber se o capitalismo tem ou não um carácter progressivo. Os decrescentistas afirmam que insistir no carácter progressivo do capitalismo se torna cada vez mais absurdo à medida que a atividade económica divide ainda mais o mundo e o aquecimento global acelera; os eco-modernistas argumentam que os decrescentistas querem forçar-nos a regressar à idade da pedra.
Somos, mais uma vez, encorajados a escolher um lado. No entanto, devemos ter cuidado com afirmações ousadas, dizendo que a "industrialização moderna", as "novas tecnologias" ou mesmo o "capitalismo" - conceitos muitas vezes entendidos de forma muito diferente - "é" ou "não é" progressista ou reacionário. Perante o aquecimento global, aprecio Walter Benjamin por ter invertido a ideia de Marx de que as revoluções eram as locomotivas da história; pelo contrário, as revoluções são tentativas dos passageiros de puxar o travão de emergência!
No entanto, sejamos honestos: o socialismo pode representar uma rutura com o capitalismo, mas todas as revoluções tendem a conter diferentes formas de continuidade, quer queiramos quer não, com enormes variações temporais e geográficas. Aquilo com que rompemos também terá sempre um impacto no futuro. O ecossocialismo pode ser uma rutura com o capitalismo, mas não deixa de ser uma rutura com o capitalismo.
Um aspeto surpreendente deste debate é a frequência com que ambos os campos recorrem a Karl Marx para apoiar a sua posição. Os eco-modernistas citam frequentemente Marx sobre o carácter progressivo do sistema e a necessidade de ação da classe trabalhadora, com Huber a reivindicar o regresso ao "núcleo" do marxismo na dinâmica da produção capitalista.[14] Os decrescentistas, por outro lado, enfatizam a natureza destrutiva do sistema e a necessidade de revolução. Com base em novas provas marxológicas, Kohei Saito vai um pouco mais longe, argumentando que o Marx "maduro" apoiava o comunismo de decrescimento.[15]
Devemos continuar a ler Marx por uma série de razões. Continua a ser o melhor ponto de partida para compreender as raízes das alterações climáticas; não podemos compreender o aquecimento global sem compreender a dinâmica da motivação do lucro, da acumulação de capital, da ruptura metabólica, da luta de classes e das fraturas de classe. Marx é também - num registo positivo - o melhor ponto de partida para mudar o mundo. No entanto, como marxistas, temos de nos lembrar que o facto de Marx ter dito algo não significa automaticamente que seja verdade. Devemos ter cuidado com o exercício retórico de primeiro afirmar que Marx "realmente" quis dizer isto ou aquilo, e depois simplesmente assumir que nós também o deveríamos fazer.
Por exemplo, talvez tenhamos de abandonar a ideia de que o capitalismo possui um caráter inerentemente progressivo. Mas não podemos chegar a essa conclusão apenas a partir de uma interpretação das obras da fase mais tardia de Marx. Em vez disso, deve resultar do nosso ponto de vista contemporâneo sobre a forma como o capitalismo floresceu através do colonialismo e do imperialismo, bem como do fascismo e da guerra, ao mesmo tempo que produziu fome em massa e alterações climáticas. Da mesma forma, a noção de que o decrescimento não é um slogan útil para os socialistas não tem origem na leitura do jovem Marx, mas sim em experiências (falhadas) de organização ecosocialista na prática. Como marxistas, devemos ter confiança suficiente na nossa própria análise para evitar fazer afirmações verdadeiras apenas com base no guião sagrado.
Mas porquê a necessidade de justificar essas posições com citações de Marx? Se o objetivo é aumentar a nossa compreensão do mundo e melhorar as nossas estratégias, muito bem. No entanto, sinto-me tentado a perguntar: estarão os movimentos socialistas tão distantes da influência real que se torna apelativo para os intelectuais socialistas regressar à "fonte", para encontrar orientação, energia e conforto? Por outras palavras, será que nos voltamos para os debates da teoria radical quando é difícil ser politicamente radical?
E A QUESTÃO DA CLASSE
Talvez o maior problema da polarização entre decrescimento e eco-modernistas seja o facto de impedir discussões úteis sobre a luta de classes. Matt Huber define classes que estão em relações antagónicas entre si e argumenta que a classe trabalhadora é uma classe separada da PMC, que inclui todo o movimento ambientalista.[16] Esta é uma afirmação ousada. Certamente pode haver tensões entre muitos trabalhadores organizados e muitas pessoas dentro do movimento ambientalista, mas se há relações antagónicas, isso significa luta de classes. Existe realmente uma luta de classes entre a classe trabalhadora e a "classe" que ocupou o movimento ambientalista?
A crença de Huber no antagonismo entre uma classe trabalhadora progressista e uma "classe profissional" reacionária é espelhada, em alguns aspectos, pelas críticas do decrescimento ao imperialismo ecológico. O decrescentista Tadzio Müller, por exemplo, argumenta que os trabalhadores fabris do Norte global não serão apenas nossos inimigos, "eles serão os nossos inimigos mais eficazes".[17] Aqui, a conversa sobre classe começa e termina apontando que os trabalhadores do Norte global têm um modo de vida "imperial".
Mais uma vez, esta polarização apaga a complexidade e obscurece o caminho do ecossocialismo. Para compreender as relações existentes e potenciais entre os trabalhadores atuais e as alterações climáticas, temos também de entender a classe trabalhadora como heterogénea. Temos de entender as diferenças entre sindicatos, as relações com a luta de classes fora dos locais de trabalho, as geografias, a idade, o género e muito mais. É intelectualmente desonesto ignorar as tensões entre os trabalhadores e o clima, o racismo e o imperialismo. Mas também é politicamente desesperante pensar que estas tensões são tão grandes que os "trabalhadores" - seja qual for a sua definição - não podem ou não devem ser os sujeitos políticos que vão travar o aquecimento global.
Continua a ser um pré-requisito absoluto para os ecossocialistas que o trabalho organizado (muitas vezes alienados pelos movimentos de decrescimento) e os movimentos ambientalistas (muitas vezes alienados pelos eco-modernistas) não só sejam radicalizados e fortalecidos, mas também unidos. Isto não deve ser formulado como a necessidade de reconciliar o movimento ambientalista e a "classe". O movimento climático é muito composto por pessoas que não possuem quaisquer meios de produção (ou seja, a classe trabalhadora em geral) e tem como principal inimigo articulado a indústria dos combustíveis fósseis (ou seja, uma fração da classe capitalista).
Isto já é luta de classes. O facto de a consciência de classe ser baixa - por vezes extremamente baixa - em algumas partes do movimento, é de facto um problema. Esse problema é agravado pelo facto de os eco-modernistas e os decrescentistas reproduzirem discursivamente e aplaudirem o conflito. Em vez de um ponto de partida marxista clássico (relação com os meios de produção), o foco cai muitas vezes na estética e no gosto, na cultura e na educação, e muitas vezes (inconscientemente ou não) veem os "trabalhadores" como trabalhadores (brancos) da indústria do sexo masculino.[18]
O principal desafio socialista não é juntar "ambiente" e "classe"; é conciliar a luta de classes no movimento ambientalista com a luta de classes no local de trabalho. Conciliar a classe trabalhadora em geral é uma tarefa difícil, mas não nos deve surpreender: foi o que aconteceu durante dois séculos. A luta de classes contra as crises ecológicas não pode basear-se na ideia de que o socialismo significa uma incrível abundância de bens materiais para todos os trabalhadores. Mas também não pode partir do decrescimento. É inevitável que a maioria das pessoas associe sempre o decrescimento a um objetivo imediato de menor crescimento económico (frequentemente o PIB) no imediato. Os slogans importam e é difícil unir a generalidade da classe trabalhadora em torno deste slogan.
OBSERVAÇÕES FINAIS
Schmelzer, Vetter e Vansintjan argumentam que o "objetivo inicial" do decrescimento era servir como "uma provocação, um iniciador de conversas, um perturbador".[19] Acredito que esta provocação era necessária e trouxe questões importantes para a mesa. Atualmente, nenhum socialista sério pode argumentar que os limites ecológicos não são importantes. No entanto, para os socialistas, a questão principal não é se somos a favor ou contra o crescimento. Esta não deve ser uma fronteira que divide o(s) movimento(s) desde o início.
Em vez de nos concentrarmos no crescimento "mais ou menos", deveríamos olhar numa direção diferente. Há apenas alguns anos, teria sido mais óbvio começar, por exemplo, com distinções entre valor de uso e valor de troca. Como Michael Löwy indicou em 2015, o conceito de "mais" ou "menos" crescimento assenta numa abordagem quantitativa do fenómeno, enquanto o ecossocialismo é uma rutura qualitativa.[20] Uma economia socialista e democraticamente planeada não pode ser medida pela bitola do capitalismo.
Quando lutamos para substituir os combustíveis fósseis por fontes de energia renováveis de uma forma socialista, a nossa principal preocupação não é se isso cria "crescimento". Precisamos de programas de transição ecossocialistas para planear, construir e organizar uma nova hegemonia, e um movimento ecossocialista para a concretizar, para um mundo que dê prioridade às necessidades humanas dentro dos limites ecológicos. Isto pode ser feito sem ficarmos atolados no "crescimento". Precisaremos de investimentos maciços em novas energias, liderados pelo Estado, e de uma redução do rendimento biofísico global. Mas o ecossocialismo - e não o eco-modernismo ou o decrescimento - é o quadro em que devemos trabalhar.
Para construir um movimento que possa vencer, os ecossocialistas devem concordar com alguns princípios. Primeiro, não podemos - contra o eco-modernismo - ter um aumento infinito da atividade económica num planeta limitado, e muito menos séculos consecutivos de aumento do rendimento biofísico. Em segundo lugar, não podemos - contra o decrescimento - mobilizar a classe trabalhadora em geral ou qualquer movimento amplo, fazendo do "menos crescimento" o foco do nosso projeto. Por outras palavras: o ecossocialismo tem de resistir a um sistema baseado no que convencionalmente se descreve como crescimento económico infinito, mas não podemos começar por confrontar diretamente o crescimento económico tal como convencionalmente entendido em termos de PIB.
A partir deste ponto de partida, segue-se uma série de outras questões relativas aos investimentos do Estado, às tecnologias, às políticas de ordenamento do território, aos transportes, à organização do consumo e da distribuição, às formas de produção a encerrar, etc. Estas questões devem ser abordadas através de discussões concretas, sempre com os ouvidos bem abertos e atentos às nuances e diferenças contextuais.
Haverá, de facto, diferentes pontos de vista entre os ecossocialistas, mas um movimento ecossocialista alargado beneficiará com o facto de discordar a este nível político, em vez de questões abstractas (muitas vezes a roçar a metafísica) relativas ao "crescimento" ou ao carácter progressivo inerente à industrialização.
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[1] Agradecimentos a William Callison e Tatjana Söding, bem como a George Edwards, Andreas Malm e Jacob McLean. Gostaria também de agradecer a Vanessa Wills e Dan Boscov-Ellen, da Spectre, pelo feedback, apoio e/ou comentários sobre projetos anteriores.
[2] Kohei Saito. Marx in the Anthropocene. Cambridge: Cambridge University Press, 2022.
[3] Este é um terreno acidentado, uma vez que não existem princípios normalizados para a utilização dos conceitos. Por vezes, os conceitos são utilizados pelos críticos, outras vezes pelos adeptos e, por vezes, pelos adeptos e pelos críticos como "provocações" (por exemplo, a aceleração como comunismo de luxo). Neste caso, utilizo "eco-modernismo" como um termo geral, o que também é feito por um dos adeptos mais vocais desta direção. Ver Matt Huber, "Mish-Mash Ecologism", Sidecar da New Left Review, 18 de agosto de 2022. https://newleftreview.org/sidecar/posts/mish-mash-ecologism.
[4] Saito 2022, p. 208.
[5] Matt Huber. Climate Change as Class War: Building Socialism on a Warming Planet. London: Verso, 2022, p. 148.
[6] Matthias Schmelzer, Andrea Vetter, and Aaron Vansintjan. The Future is Degrowth: A Guide to a World Beyond Capitalism. New York: Verso, 2022, p. 198.
[7] Rikard Warlenius complicou esta questão com dois pontos. Primeiro, apesar de afirmarem que não são contra o crescimento do PIB, os decrescentistas dedicam uma quantidade desproporcional de esforços a criticar o crescimento do PIB. E segundo, se eles vêem possibilidades muito limitadas de dissociar o crescimento económico do aumento da pressão ambiental, e argumentam que o aumento do crescimento do PIB leva necessariamente a um aumento do rendimento biofísico, então isto também tem de acontecer ao contrário: a diminuição do rendimento biofísico levará a um menor crescimento do PIB. Ver Natalie Suzelis, "Class Struggle Against Growth: A Review of Two Guides Against Extinction," Spectre, 25 de agosto de 2022. https://spectrejournal.com/class-struggle-against-growth/; Rikard Hjorth Warlenius. Klimatet, tillväxten och kapitalismen. Stockholm: Verbal, 2022, p. 199.
[8] Huber 2022, see e.g., pp. 38, 64, 111, 188.
[9] Para um discussão relevante, ver também Stephen Maher e Joshua K. McEvoy. 2023. “Between De-Growth and Eco-Modernism: Theorizing a Green Transition.” Critical Sociology, https://doi.org/10.1177/08969205231177370.
[10] Phillips, Leigh. The degrowth delusion. Open Democracy. 2019. https://www.opendemocracy.net/en/oureconomy/degrowth-delusion/?fbclid=IwAR2Enz4-OwF8U6YosDf3UVmeQLO7s-7hdrY_jKNeNBpOAjiigzukA12EW5M
[11] Kate Raworth. Donutekonomin. Sju principer för en framtida ekonomi. Gothenburg: Daidalos, 2018, p. 35; Schmelzer et al. 2022, p. 18; Saito 2022, p. 235.
[12] Esta tradição remonta a Adam Smith e John Stuart Mill. Para uma defesa contemporânea, ver, por exemplo, Ann Pettifor. The Case for The Green New Deal. London: Verso, 2020.
[13] Para uma boa discussão sobre o crescimento, ver Warlenius, 2022.
[14] Para uma crítica, ver Suzelis 2022.
[15] Saito 2022.
[16] Huber 2022, pp. 3, 20.
[17] In "#123 Blow up pipelines? Tadzio Müller and Andreas Malm on what next for the climate movement," 5 de maio de 2021,
[18] Esta questão será desenvolvida em Ståle Holgersen, Against the Crisis. Londres: Verso, a publicar em 2024.
[19] Schmelzer et al. 2022, p. 16.
[20] Ver também Michael Löwy. Ecossocialism: A radical alternative to capitalist catastrophe. Chicago: Haymarket Books. 2015, p. 32.
Parece-me que esta tentativa de trilhar o caminho do meio peca por cair no que os anglo-saxonicos denominanm por "false balance".
A critica ao eco-modernismo parece assentar fundamentalmente na assercao teorica de que "nao e possivel have crescimento ilimitado num mundo finito":
Tenho aqui alguns problemas com este conceito a levantar:
1 - na sua forma mais simples, tenta argumentar que a prosperidade economica em termos fisicos, consiste numa captura do mundo fisico para a esfera de controlo humano atraves do sistema economico. Ora a fisica diz-nos que materia = energia, assim sendo tudo isto pode ser visto do ponto de vista de fluxos energeticos e desse prisma, a sociedade Humana esta muito longe de capturar o total de energia com que o planeta e bombardeado.
2 - Outro problema que eu vejo e que do ponto de vista Marxista, e o trabalho humano que cria valor. Portanto, em abstracto, os limites ao crescimento da economia humana nao sao limites fisicos mas sim limites de Humanos - pelo menos enquanto o paradigma que ensaio no ponto 1 se mantiver valido.
3 - Por fim, temos ainda a ficcao cientifica: so faz sentido falar dos "limites fisicos do planeta" enquanto a civilizacao humana nao puder viajar no espaco sideral.
Tenho ainda outra objeccao a levantar a este problema teorico que e um paralelo da dita teoria economica: a teoria economica diz que no abstracto, baseado nos primeiros principios da lei de oferta/procura, o subsidio de desemprego deveria causar desemprego porque cria um incentivo para reduzir a procura de emprego. De um ponto de vista teorico abstracto a teoria e inatacavel, a sua consistencia interna e excelente. O problema deste conceito teorico abstracto e o seu choque com a realidade realmente existente e a observacao empirica que por muito que os economistas neoliberais torturem os dados, nao conseguem encontrar esse tal desemprego alimentado por subsidios conforme previsto pela teoria.
Por outro lado, do ponto de vista do decrescimento economico aponto o exemplo do Japao: ha decadas que o Japao, fruto das suas politicas migratorias e economicas vive um fenomeno de estabilidade economica - ou estagnacao como alguns lhe apelidam. O Japao, envelhece, e a sua populacao esta em declinio suave, isto reflecte-se em crescimentos economicos anemicos que ocorrem em paralelo com uma manutencao dos padroes de qualidade de vida da sua populacao.
A primeira vista, isto parece-me uma sociedade que segue, grosso modo, o preceitos do estabilizacao economica prescrita pelos decrecionistas, no entanto nao se detecta qualquer melhoria em termos de sustentabilidade ambiental.
Quero deixar uma ultima nota. Parece-me um contra-senso falar em transicao para uma economia verde negando o crescimento economico conforme ele e entendido pela teoria economica actual: a transicao necessaria que ai vem implica grandes projectos de construcao, de coisas, construcao fisica - or isto implica usar materiais e coisas e acima de tudo implica muito trabalho Humano para a erguer. Qualquer que seja a perspectiva de como o cresciemento economico e gerado, esta transicao para uma econimia verde so se fara, por definicao, com recurso a crescimento economico.