Lula 3: a valsa no precipício
Depois dos primeiros seis meses de governo Lula, a estratégia económica para o mandato fica cada vez mais evidente. Para ter sucesso, o governo terá de se libertar das amarras orçamentais autoimpostas
No primeiro dia de Janeiro deste ano, Lula começou o seu terceiro mandato como Presidente do Brasil. Exatamente 20 anos depois de ter-se tornado o primeiro, e único, operário a chegar à presidência do Brasil. A situação política, tanto interna como externa, mudou profundamente entre os dois atos de Lula. Em 2003, a China ainda era um país bem mais pobre (PIB per capita) que o Brasil. Hoje, a China compete com os Estados Unidos no desenvolvimento tecnológico e por influência global. Com o milagre económico chinês, que levou a um aumento do consumo de bens alimentares, a nação asiática tornou-se o principal parceiro comercial do Brasil, destronando os Estados Unidos no seu próprio Hemisfério. Em quase todos os países da América Latina, a China tornou-se num parceiro comercial mais relevante que a maior economia do mundo.
No plano interno, Lula herdou de Bolsonaro um país muito diferente daquele que herdou de Fernando Henrique Cardoso e isso tem consequências para qualquer tipo de política remotamente progressista. Mesmo com a derrota de Bolsonaro, o Congresso Brasileiro continuou a trajetória de viragem para forças ultra-conservadoras e reacionárias, iniciada antes da eleição de Bolsonaro. Após vários governos fracos e instáveis, os executivos brasileiros estão menos poderosos perante o Congresso Nacional. Os governos Bolsonaro e Temer deixaram o Estado com menos instrumentos de política económica: ambos conduziram uma série de privatizações de empresas estratégicas como a Eletrobras, a distribuidora de gás TAG, a Embraer e várias refinarias. Na gestão Bolsonaro-Guedes o Brasil adotou a dita “independência” do Banco Central, um dos tripés do neoliberalismo que tardou a chegar ao Brasil.
Estas mudanças confirmam o óbvio: o terceiro governo Lula não pode simplesmente replicar a estratégia dos seus dois primeiros mandatos. Mesmo que a história não se repita, é útil analisar os mandatos de Lula, que combinados com os seus primeiros seis meses de governação, revelam a estratégia petista para os próximos quatro anos.
A VOLTA DA AUSTERIDADE EXPANSIONISTA EM BUSCA DE UMA NOVA BASE
Até agora, a grande medida económica do Lula foi a aprovação do 'arcabouço fiscal’, uma nova regra orçamental altamente restritiva, que veio substituir o anterior teto de gastos - política do governo Temer, constantemente descumprido por Bolsonaro, que previa congelar os gastos públicos por 20 anos. Os críticos à esquerda do governo, corretamente, apontam que apesar de Lula ter prometido revogar ‘uma estupidez chamada teto de gastos’, acabou por aprovar uma versão suavizada do mesmo. As evidências são tais que o projeto liderado pelo Ministro Haddad recolheu elogios variados da direita. O ministro já foi duas vezes capa da Revista Veja, um importante braço do antipetismo, pelo seu suposto bom senso económico. Para piorar a situação, a nova regra orçamental recolheu os elogios envenenados de João Doria e Bolsonaro, que impuseram fortes derrotas eleitorais a Haddad, em 2016 e 2018, respectivamente. A agência de rating Standard and Poor's, representante do capital financeiro externo, também deu a sua benção a Haddad, ao melhorar as perspectivas do Brasil.
No entanto, isto não significa que o executivo Lula planeie seguir rigorosamente a pauta neoliberal que o Brasil tem adotado acriticamente, pelo menos desde 2016. Ao mesmo tempo que o governo anunciava a sua regra orçamental, que restringe o poder do Estado como motor económico, e outras medidas para agradar aos mercado financeiros, o executivo garantiu algumas boas medidas sociais. Entre estas estão incluídas a expansão do Bolsa Família, o reforço da Farmácia Popular, o corte de impostos para os trabalhadores mais pobres, como também a redução do preço do gás, gasolina e dos carros mais baratos do mercado (“carros populares”).
Esta dualidade política não é novidade em gestões petistas. A estratégia assemelha-se bastante aos primeiros anos do governo Lula, com o Antonio Palocci no comando da economia. O Estado foi um agente económico altamente restritivo e conservador, em nome da estabilidade dos mercados - através de altas taxas de juros, cortes da despesa pública - enquanto o aumento do salário mínimo, a introdução de novos programas sociais como o Bolsa Família, e o crescimento da China (via exportações de matérias primas) garantiam o crescimento e redistribuição. Como afirmou Nelson Barbosa [ex-ministro dos governos do PT], para o livro ‘PT, uma História', o Brasil foi um raro caso de ‘austeridade expansionista’. Este termo pseudo-científico foi criado por economistas neoliberais da Bocconi - uma espécie de Nova School of Business and Economics italiana - para alimentar um suposto racional por detrás da austeridade imposta no sul da Europa. Ironicamente, o conceito acaba por resumir o modelo de crescimento do Brasil durantes os primeiros anos do governo Lula, que combinava austeridade monetária e orçamental do Estado, com a expansão do setor privados através do boom das matérias primas (exportadores) e da redistribuição de rendimentos (serviços locais consumidos pelas classes populares).
Esta combinação política reorganizou a base eleitoral de Lula. Passou a conquistar novas bases eleitorais beneficiadas pelos seus programas sociais, em especial no Norte e Nordeste do Brasil, enquanto o PT perdia apoio no Sul do país que continuava o seu processo nefasto de desindustrialização precoce. As medidas sociais do terceiro governo Lula têm em mente esta constante reconfiguração de bases políticas e eleitorais. O reforço do Bolsa Família e a redução de impostos sobre o rendimento dos mais pobres cimenta a força de Lula entre os mais pobres e tenta conquistar eleitores mais jovens sem grandes memórias dos seus mandatos anteriores. Políticas activas para reduzir os preços dos combustíveis e automóveis, sendo positivas para a classe trabalhadora, parece terem um segundo objetivo: conquistar uma aliança com o novo proletariado altamente precarizado da gig economy, enquanto incentiva a produção automóvel doméstica, num exercício clássico de conciliação de classes lulista. Da mesma forma que Lula foi uma liderança do novo sindicalismo dos anos 80, os entregadores estão a criar movimentos laborais autónomos e mantêm a sua postura combativa nos primeiros meses do governo Lula.
O Presidente do Brasil está consciente disso e sabe que criar pontes políticas com estes trabalhadores é fundamental para que o seu partido e governo mantenham uma forte identidade ligada ao mundo do Trabalho. Durante a campanha, Lula falou vezes sem conta da precariedade dos entregadores e da reforma laboral Espanhola, chefiada pela Ministra Yolanda Diaz (líder e fundadora do SUMAR, novo movimento de esquerda espanhol), como inspiração para o Brasil. No mês passado, o governo anunciou um grupo de trabalho para a regularização desta classe.
Na incerteza de um novo boom das matérias primas, Lula tenta usar o seu peso diplomático, e a importância global da Amazónia, para criar um outro boom de procura externa, desta vez de investimento estrangeiro, que ajude a segurar minimamente a economia brasileira enquanto o Estado mantém uma política austera (tanto a nível orçamental como juros altos). Essa estratégia torna-se evidente pelo número de viagens que o Presidente brasileiro fez, mesmo com o Brasil a passar por uma várias de crises domésticas (ex: ataques a Brasília, desastres naturais e os ataques ao povo Yanomami). O chefe de Estado brasileiro já viajou para onze países diferentes, e na sequência dessas viagens, anunciou alguns investimentos estrangeiros, tanto no Fundo Amazónia como na capacidade produtiva nacional (refinarias e outros). O Brasil tenta usar habilmente a sua posição de não alinhamento geopolítico para promover uma competição económica entre Estados Unidos e China. Nada melhor para resumir essa competição que o anúncio da chinesa BYD, maior fabricante de carros elétricos do mundo, em abrir uma fábrica no antigo (e último) pólo industrial da Ford no Brasil.
DOIS EM UM, VERSÃO LULISTA
Mesmo que uma ‘nova austeridade expansionista’ não seja uma total catástrofe económica e social, dificilmente garantirá fortes níveis de popularidade (e uma forte base social) ao governo de Lula durante quatro anos. À primeira vista, os números da economia são animadores para o executivo e podem ser usados como prova que a sua estratégia está a resultar na perfeição. No primeiro trimestre do ano, o crescimento da economia foi acima das expectativas, a inflação mantém-se numa trajetória de queda e a confiança do consumidor atinge máximos dos últimos quatro anos. Contudo, as políticas do governo Lula dificilmente tiveram um efeito substancial e imediato nos primeiros meses do seu executivo, principalmente quando o motor do crescimento foi a agropecuária. A exportação de bens alimentares cresceu brutalmente e a indústria sofreu uma queda. Camuflada num “bom PIB”, esta é uma realidade difícil para o governo. A agropecuária é um setor que cria poucos empregos; altamente concentrados na mão de poucos latifundiários; que paga poucos impostos; e para piorar a situação, o setor tem-se expandido através do roubo de terras protegidas e públicas. Enquanto a indústria e outros setores foram asfixiados por taxas de juro estratosféricas e uma política orçamental austeritária, a agropecuária atalha com um processo que se assemelha com a acumulação primitiva de capital. A apropriação de terras, para além de ser um crime ambiental, acaba por ser um programa tóxico de privatizações sem qualquer retorno para os cofres do Estado.
A intensificação do atual modelo de super exportação agropecuária não trará ganhos substantivos para Lula. Nos governos Temer-Bolsonaro, o Brasil tornou-se num exportador grande líquido - por meio da venda de bens alimentares para a China e de uma constante supressão das importações. Na prática, isso significa um sector agropecuário pujante que coabita com uma classe trabalhadora sem rendimentos suficientes para consumir bens importados de forma substancial, e a indústria mantém um baixo nível de investimento em máquinas e equipamentos estrangeiros. Se este modelo fosse minimamente popular, Temer não teria saído da presidência com 5% de aprovação e Lula não teria sido reeleito com o forte apoio da classe popular.
Uma sobrevivência política através de um modelo agroexportador colocará em causa os próprios objetivos económico-diplomáticos de Lula. A diplomacia ambiental com a Amazónia na vanguarda, sinalizada na ‘OPEC das florestas’ e nos compromissos de preservação ambiental, não são compatíveis com o modelo de governação da última década.
Para obter bons resultados nas próximas eleições municipais e garantir que o PT consiga a reeleição presidencial, a combinação de contração do Estado com expansionismo agropecuário terá de ser revertida. Quando Lula saiu da presidência com 83% de aprovação, o seu executivo tinha deixado a ‘austeridade expansionista’ para trás e abraçado o expansionismo Keynesiano. Em resposta à crise financeira, o governo promoveu a expansão de crédito através de bancos públicos e o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), um projeto de obras públicas para retomar o crescimento económico. Ao contrário do Norte Global, a economia brasileira recuperou rapidamente e levou o Brasil Petista para a capa da The Economist, em 2009.
Lula e o PT sabem perfeitamente que este período expansionista foi a chave para o seu sucesso pós-Lula. Caso contrário, não teriam apresentado a relativamente desconhecida Dilma Rousseff como ‘a mãe do PAC’. Por isso é expectável que o executivo petista tente acelerar o crescimento na segunda metade do seu mandato. A mudança da presidência do Banco Central, no final do próximo ano, para uma figura menos hostil ao governo, deverá dar alguma margem de manobra para uma política monetária mais relaxada. Neste momento o “independente” Banco Central opera a maior taxa de juro real do mundo, criando um verdadeiro paraíso do rentismo que asfixia o setor produtivo e a classe trabalhadora. Uma eventual exploração de novos poços de petróleo próximos da Foz do Amazonas - contestada e incerta do ponto de vista ambiental - pode dar um fôlego económico e maior poder ao executivo face a um poderoso congresso.
O terceiro governo Lula parece tentar replicar a estratégia dos seus mandatos anteriores em apenas quatro anos. Uma tática bastante arriscada, sem qualquer margem de erro e vulnerável a vários fatores fora do controlo do executivo. A recente decisão do Tribunal Superior Eleitoral de tornarBolsonaro inelegível e a morte política das principais figuras do lava jatismo (aqui eaqui) criam um vazio de liderança na direita que dão, pelo menos temporariamente, uma maior margem de manobra política ao governo . A intuição política e carisma do Presidente não serão suficientes para criar um boom de investimento competitivo entre a China e os Estados Unidos em solo brasileiro que compense uma política económica austera. Aguardar uma nova bonança do petróleo não é um projeto de governo mas apenas fé. As chances de um presidente sobreviver politicamente a um início de mandato economicamente fraco são baixas, mesmo para o veterano Lula. O governo deu alguns passos importantes para consolidar e expandir a sua base popular que podem ser sabotados pela sua própria condução orçamental. Para a aposta de Lula ter a mínima viabilidade, a prioridade do Presidente tem de ser a revogação das suas próprias regras orçamentais, o mais rapidamente possível.
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