Faltam casas, a nova cassete do neoliberalismo urbano
Esta ideia é uma réplica de teorias ortodoxas, sem qualquer contextualização do papel de Portugal na economia global e os efeitos da austeridade que nunca foi revertida por completo
A crise da habitação, que neste momento é um dos principais problemas em Portugal, tem feito com que o debate económico e político tenha se deslocado para este e outros temas urbanos.
Para a esquerda, não é uma novidade analisar a economia e política através do espaço urbano: Engels escreveu a ‘A situação da classe trabalhadora na Inglaterra’; Joan Robinson desenvolveu a teoria do monopsônio (monopólios empresariais locais); e David Harvey conceptualizou a ideia de transição de administrativismo para empreendedorismo urbano. Assim, as principais propostas da esquerda têm em conta a distribuição de poder dentro da sociedade e focam-se na construção de um parque público; a regulação do espaço público (quer sejam alojamentos turísticos ou benefícios fiscais); e até mesmo o controlo de rendas.
Do lado da direita, o problema é um e único: a falta de construção. Um diagnóstico que não dá grandes detalhes sobre os motivos pelos quais Portugal - um dos países da europa com mais casas por habitante, demograficamente estagnado, envelhecido, e com fraco crescimento económico nos últimos vinte anos - tem uma recente escassez de casas. As mais recentes explicações passam, entre outros factores, pela demonização das regulações, como a obrigatoriedade dos bidés.
AS ORIGENS DO NEOLIBERALISMO URBANO
O diagnóstico simplista da direita brota do pensamento dominante da “economia urbana”. Uma área de estudo dominada por teorias neoliberais - como grande parte das áreas da economia nas universidade - e que pode ser resumida na obra de dois dos principais urbanistas neoliberais: Ed Glaeser e Enrico Moretti. Ambos escreveram “livros de aeroporto” sobre o tema (O Triunfo da Cidade e ‘The New Geography of Jobs’ [A Nova Geografia do Trabalho], respectivamente). A síntese destas obras pode ser resumida em quatro pontos:
Economicamente, cidades são mercados de trabalho;
As cidades são boas do ponto de vista económico. Somos mais produtivos nelas, através de algo que os economistas chamam de “economias de aglomeração";
O crescimento económico das últimas décadas concentra-se em grandes cidades, onde empregos altamente qualificados (tech na Califórnia ou Seattle) criam indiretamente inúmeros empregos em serviços como cafés e restaurantes (multiplicador do emprego).
O sucesso económico traz alguns problemas (externalidades em economês): em especial escassez de habitação, poluição e trânsito. Construir mais casas e taxar o uso do carro são as formas de resolver o problema.
Se a primeira ideia é útil e relativamente inofensiva, as restantes devem ser analisadas com detalhe, desconstruídas e combatidas.
Se a primeira ideia é útil e relativamente inofensiva, as restantes devem ser analisadas com detalhe, desconstruídas e combatidas.
As “economias de aglomeração” são o pilar do neoliberalismo urbano. Não há dúvidas que a aglomeração de pessoas e troca de ideias podem promover novas invenções e melhorias económicas, como a literatura mostra. No entanto, a sua análise ignora por completo as dinâmicas entre classes e uso de bens públicos, algo facilmente identificado com umas lentes menos ortodoxas.
O aumento dos salários e da produtividade causada pela urbanização podem ser explicados por outros fatores como i) maior poder negocial por parte dos trabalhadores ii) o uso de bens públicos, como o transporte público, reduz o consumo de bens importados. Um subsegmento da “economia urbana” tem caminhado lentamente nessa direção. Trabalhos de investigação publicados recentemente (aqui e aqui) mostram que a concentração de empregos numa geografia aumenta o seu poder negocial, porque permite aos trabalhadores mudarem de emprego com maior facilidade. Este mecanismo foi muito discutido nos últimos anos com o fenômeno da “Grande Renúncia”. Os trabalhadores ao terem maior poder negocial, através da possibilidade de troca de emprego, acabam forçar os patrões dar uma maior parte da mais valia do seu trabalho. Esta análise confirma a teoria pós-keynesiana de monopsônio, contudo é totalmente ignorada pela ortodoxia do urbanismo económico.
A urbanização logicamente aumenta a viabilidade dos transportes públicos (mais procura num pequeno espaço) e mobilidade suave. Consequentemente, estas alternativas reduzem o consumo de energia importada (petróleo). Nesta linha de pensamento, os “urbanistas neoliberais” alegam que as cidades são verdes porque consumimos menos carbono. Mas curiosamente, não reconhecem os benefícios do mecanismo de substituição de importações implícito nessa ideia para explicar os benefícios económicos das cidades.
A ideia do “multiplicador de empregos”, em que os “urbanistas neoliberais” se focam como forma de melhorar a vida das classes populares, é simplesmente uma nova versão de “trickle-down economics” com uma roupagem urbana e moderna. De forma pouco surpreendente, soluções como baixos impostos e desregulação para atrair empresas de alta tecnologia são frequentemente apresentadas.
Por fim, o quarto ponto é o ponto mais importante no debate em Portugal. Estas ideias têm sido importadas para o pensamento político português, em especial na direita. Seja através da leitura dos “urbanistas neoliberais” originais, seguindojornalistas e Youtubers (ingleses e norte-americanos) focados na área, ou até mesmo por nómadas digitais. Para além do óbvio colete de forças que esta hegemonia intelectual cria - por exemplo, taxar o uso do carro não é a única forma de reduzir trânsito e poluição; melhorar a rede oubaixar os preços de transporte público conseguem atingir o mesmo resultado - a cópia destas ideias ignora por completo o papel periférico da economia (e mercado de habitação) portuguesa dentro do Norte Global.
UM MERCADO DE HABITAÇÃO MAIS GLOBAL E UM INQUILINO MAIS PERIFÉRICO
Sucessivos governos promoveram activamente políticas que tornaram o mercado imobiliário - anteriormente um mercado estritamente nacional - num mercado global. Consequentemente, o sector da construção em Portugal não irá construir casas suficientes para alimentar uma procura internacional praticamente infinita, que busca de isenções fiscais e retornos financeiros na exploração de Airbnbs. Como Nuno Serra dos Ladrões de Bicicletas mostrou, Lisboa tem simultaneamente mais habitações e menos alojamento residenciais do que em 2011. Esta aparente contradição mostra que o défice de oferta não é maioritariamente explicado por uma repentina quebra na construção, num país de baixo crescimento económico e populacional. Só em alojamentos locais (ignorando os vistos gold, estatuto do residente não habitual, etc) a Área Metropolitana de Lisboa perdeu, 28.5 mil alojamentos (6% da oferta existente), o que está ligeiramente acima dos 26 mil fogos que o governo planeia financiar no programa primeiro direito do PRR, para o país inteiro. Pode parecer que 6% das casas existentes é relativamente marginal e insignificante mas não o é. Em mercados globais como o petróleo, onde os consumidores têm maior facilidade de encontrar outras alternativas do que na habitação, o cartel da OPEP consegue manipular os preços com cortes de produção bem inferiores a 6%. Recentemente, o governo anunciou alguns remendos para arrefecer a procura internacional, mas as isenções fiscais aos residentes não habituais e vistos para nómadas digitais mantiveram-se intocadas. Num mercado com este tipo de incentivos para capitais estrangeiros, é impossível imaginar um sector da construção que construa casas na velocidade que os capitais internacionais se deslocam.Ao contrário daquilo que Carlos Moedas pensa, a especulação não se combate com mais oferta. Especulação combate-se com medidas que controlem a entrada rápida de capitais especulativos no sector imobiliário, algo praticado no Canadá e Nova Zelândia.
Outro esquecimento conveniente dos neoliberais urbanos é o papel da composição do mercado. O mesmo nível de oferta de habitação resulta em preços diferentes, dependendo do nível de concentração dos direitos de propriedade. O total foco na construção, ignorando a composição do mercado, é a receita perfeita para seguirmos o caminho de outros países, onde os fundos de investimento começam a dominar o mercado de habitação, criando lógicas oligopolistas com técnicas de despejos forçados e cortes em serviços básicos. Infelizmente, estes problemas já não são apenas receios mas realidades em piloto automático (aqui, aqui, aqui e aqui).
UMA ALTERNATIVA PÚBLICA E POPULAR
Com o tipo de constrangimentos que Portugal enfrenta, o aumento da oferta através da construção de um parque público é uma solução para a crise da habitação. Um Estado planeador permitiria que a nova oferta fosse alocada às classes trabalhadoras nos principais centros económicos do país, em vez de ser desviada para uma lógica de mercadoria-investimento.
Este tipo de gestão da habitação está longe de ser uma novidade ou um delírio “Bolivariano”. No governo trabalhista Britânico no pós-guerra, o Estado construiu800 mil habitações sociais (“Council Housing”) num só mandato. A reversão deste projecto social por parte de Thatcher tornou-se na amaior privatização da história do Reino Unido, com a venda de pelo menos 2 milhões de casas. Inspirado pelo “Fabianismo” (sociedade socialista Britânica), Lee Kuan Yew iniciou um modelo em que o Estado é o motor do mercado de habitação em Singapura. Nos primeiros anos da década de 60, quando Singapura era mais pobre que Portugal, o Estado construiu54 mil habitações públicas. Ao contrário do Reino Unido, Singapura não reverteu a sua política pública de habitação no período neoliberal. Nos dias de hoje,80% da população vive em habitação pública e a agência de habitação estatal tornou-se uma veículo para a transição energética, com ainstalação de painéis solares nos prédios que detém.
Este modelo de gestão e planeamento da habitação é cada vez mais popular. Viena, uma cidade onde as rendas são mais baixas que Lisboa e a habitação social abrange 62% da sua população, tornou-se um consenso que vai da Jacobin até ao Financial Times. O sucesso vienense de manter as rendas baixas não foi conseguido através da redução da carga fiscal ou do papel do Estado. Este projecto transformador do Município de Viena passou pela taxação de bens de luxo e propriedade.
No período democrático português, o Estado também teve um importante papel de colaborador no esforço colectivo de acabar com o défice habitacional (entre 500 e 700 mil fogos). Mesmo em projetos de natureza popular pós-25 de abril, como o SAAL, o Estado teve a função de financiador. No PER (Programa especial de realojamento), mesmo que ainda por concluir e com seus problemas, o Estado conseguiu construir 45 mil casas.
A Iniciativa Liberal, um dos principais defensores políticos da ideia que a crise da habitação é causada pela falta de construção, opõe-se a um Estado planeador que use o seu património para expandir a oferta. O partido defende uma política de inspiração “Thatcheriana” devenda do património do Estado a privados, ao mesmo tempo que o seu líder participa em manifestações em defesa do Alojamento Local.
As experiências mais semelhantes a esse tipo de operação financeira, no passado recente, foram as vendas de imóveis em bloco pela Fidelidade e Novo Banco. Estas operações levaram a uma concentração da propriedade por parte de fundos de investimento estrangeiro e negócios ruinosos para o Estado.
Uma estratégia política de privatizar o património público e insistir na Airbnbzação da economia está condenada ao falhanço. Por um lado, não resolveria a crise habitacional e, por outro lado, tornaria a economia portuguesa ainda menos complexa.
UMA TENTATIVA DE REESCREVER A HISTÓRIA
A solução aparentemente simples de reduzir regulações para construir mais casas tem também como objectivo reescrever a história recente da economia política portuguesa. No contexto internacional, Portugal tem constrangimentos burocráticos comparáveis com outros países europeus, e teoricamente tem-osreduzido ao acabar com olicenciamento prévio, em 2013. Se o licenciamento se tornou mais demorado e ineficiente em termos práticos, foi provavelmente resultado da falta de recursos do Estado e autarquias desde do período da troika. Nunca houve uma real reversão da austeridade noinvestimento público; e o número defuncionários administração pública local esteve durante uma década abaixo dos níveis pré-troika. A mais recente proposta do governo, de passar responsabilidadesdos municípios para privados (projetistas e arquitetos), é por si só a admissão de uma falta de recursos dentro do Estado.
O diagnóstico falso e simplista da falta de construção devido a regulações evita deliberadamente explicar as razões pelas quais Portugal tem um baixo nível de capacidade instalada no sector da construção. Nos anos da Troika, quando era bastante popular criticar a ‘política do betão', o governo cancelou obras de infraestrutura fundamentais (expansão do metro para a Reboleira, a alta velocidade, várias barragens), aumentou os impostos, o que levou a que a esmagadora maioria de empresas de construção falissem. Para além disso, a emigração em massa (causada por um desemprego jovem estratosférico) num país envelhecido, baixou a confiança do sector em construir novas casas.
Ricardo Arroja, comentador de economia e ex-candidato da Iniciativa Liberal, resume na perfeição a repentina mudança de estado de espírito na direita portuguesa. Quando, em 2017, Ricardo Paes Mamede debatia o crescimento económico com Ricardo Arroja, e alertava para os baixos níveis de investimento no sector da construção, Arroja não mostrava qualquer tipo de preocupação. Os preços da habitação já estavam acima do pré-crise e cresciam muito acima da inflação. Infelizmente, estes sinais do mercado não inquietaram Ricardo Arroja. Mais de 5 anos depois, o economista liberal copia o debate britânico e responsabiliza os licenciamentos (usando como fonte a “generalidade dos operadores”) pela atual crise da habitação. A semana passada, tanto na sua coluna de opinião como no seu programa de debate, Arroja apresentou-se contra o pacote de medidas coercitivas para expandir a oferta de habitação, invocando que o “direito natural à propriedade” se sobrepõe “direito social à habitação". Para o economista liberal, a crise habitacional só pode ser solucionada com mais oferta mas esta não pode ter a mão do Estado (a não ser que seja a baixar regulações, claro). Ou seja, Arroja é a favor de mais construção, mas é contra um aumento da oferta promovido pelo Estado.
O período de austeridade causou danos estruturais no sector da construção e criou um modelo económico em que Portugal "exporta casas”. Estas características da economia portuguesa não podem ser simplesmente ignoradas no debate sobre a crise habitacional. Falar da obrigatoriedade dos bidés e opor-se a qualquer intervenção estatal é apenas uma tentativa de proteger interesses privados e não assumir o apoio a várias das políticas que nos levaram aqui. Apesar de insuficientes, as propostas do governo de António Costa vão na direção de um novo modelo para habitação em Portugal. A direita não sendo ignorante, entendeu que deve bloquear qualquer medida que reduza a procura estrangeira ou que vá na direção de criar um parque público habitacional de grande envergadura. As propostas de quadros como Ricardo Arroja e Rui Rocha não servem como alternativa para resolver o problema. São apenas uma forma de garantir que tudo continue inclinado a favor dos proprietários.
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas, fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
Se gostaste do que leste, apoia-nos. É simples e não te vai custar um cêntimo: subscreve e partilha a nossa newsletter e os nossos artigos. Esse é o maior apoio que nos podes dar.