Duarte Cordeiro e o funeral da política Portuguesa
O encontro do Ministro do Ambiente com três ativistas num evento organizado pela EDP e Galp ajuda-nos a perceber a morte da política em Portugal
“Ah desculpe” foram as primeiras palavras proferidas por Duarte Cordeiro, Ministro do Ambiente, quando percebeu que duas jovens estavam a atingi-lo com bolas de tinta verde. Durante a iniciativa, as duas ativistas da Greve Climática Estudantil gritaram “sem futuro não há paz”, “não têm legitimidade social para falar da crise climática” e concluíram com “num evento patrocinado pela Galp e pela EDP”.
Depois das manifestantes afastadas, Duarte Cordeiro, já com uma mudança da roupa, retomou a intervenção na “CNN Portugal Summit”. Regulação, taxação, incentivos aos investimentos dominaram o discurso do Ministro.
Depois da sua saída de cena, entraram os CEOs da EDP e Galp, respetivamente, Miguel Stillwell de Andrade e Filipe Crisóstomo Silva. Nas intervenções dos patrocinadores do evento, os temas centrais foram investimentos, margens de lucro e oportunidades.
Cruzar estas duas intervenções é um exercício iluminador. A transição energética é um desafio colossal que implica, como é reconhecido publicamente por Ministros e CEOs, alterar drasticamente as formas como produzimos e consumimos energia.
Na hora de Ministros fazerem o seu trabalho, isto é, governar, qualquer noção de política pública é dobrada às exigências do investimento privado. Ao invés de o próprio Estado intervir fortemente na economia, fazendo as leis e os investimentos necessários, segue um modus operandi ditado pelo neoliberalismo – o Estado não desaparece, pelo contrário, é reforçado para promover o domínio dos mercados.
O primeiro passo é definir objetivos, geralmente pouco ambiciosos. O segundo é esperar que o setor privado invista, aliciando-o com incentivos fiscais e outro tipo de borlas, como o constante esticar dos prazos para os projetos solares. Quando as condições não forem o suficientemente atrativas para o setor privado, a proposta política falhou. Em terceiro, as metas são revistas em função do que os mercados ditam.
Recentemente, o governo encurtou as metas para a descarbonização (para metas ainda muito aquém face ao necessário), mas não se tratou de um ato político. O ajuste tratou-se de uma revisão em alta dos investimentos privados, neste caso, alinhado com a uma aparente ambição política. No fim, os lucros são supremos sobre qualquer exercício de vontade pública.
A situação torna-se mais caricata quando, até recentemente, as empresas que o Estado tem de agora satisfazer para poder traçar qualquer objetivo político fizeram parte do setor público . A Galp e a EDP foram privatizadas nas últimas décadas para o Estado agora se dobrar perante as exigências destas.
Frequentemente, um alinhamento com as regras da União Europeia é citado como a razão de ser das privatizações de Portugal no setor energético. Enquanto vários podem dar valor às boas relações no espaço europeu, a política de destruição do setor público foi uma opção tomada pelo arco da governação em Portugal. Ou como exposto num recente relatório sobre a temática:
Embora os “ventos” que sopraram da UE tenham sido importantes para a transformação do setor energético em Portugal, a opção da privatização por completo foi uma decisão nacional conduzida pelos sucessivos governos, em especial desde a década de 80 até agora.
Ou ainda, olhando para o resto do espaço europeu:
A todos os argumentos técnicos ainda se junta um do mundo real: nos Estados membros da UE há inúmeras empresas públicas a atuar ao longo de toda a cadeia energética.
Já em entrevista à CNN depois da ação, a porta voz da ação da pintura ao Ministro afirmou que não faz sentido um ministro colocar-se na posição de falar numa conferência organizada pelas empresas sobre as quais deveria ter poder, mas sim que devia estar “ocupado a escrever o plano de transição energética para o nosso país”.
Normalmente, o debate público sobre as consequências das privatizações ficam-se por argumentos (certos) como a perda de dividendos ou a deterioração do serviço ao consumidor, desde a abastecer o carro a utilizar os correios. Mas devemos olhar para a alienação do setor público muito além de como consumimos; o centro da questão tem de ser a política, ou mais concretamente, a soberania; esta está intimamente ligada com poder ocupar Ministros com tarefas úteis.
Quer no setor energético, quer noutros, a capacidade de transformar consensos sociais em políticas foi amputada pela destruição do setor público criado depois da revolução de 1974, que em várias ocasiões deu provas de ser altamente capaz.
Exercícios psicanalíticos amadores podem ser perigosos, mas aqui tomaremos algumas liberdades e afirmar que o “ah desculpe” inicial de Duarte Cordeiro foi apropriado à situação de um Ministro cujas funções são reduzidas a encaixar ambições políticas vitais com o interesse de empresas privadas.
A situação de Duarte Cordeiro não é única. O seu antecessor no cargo de Ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, depois de seis anos a validar a política feita em função das necessidades das multinacionais, ainda sem completar seis meses fora do cargo, já escrevia publicamente contra a perpetuação do usos de combustíveis fósseis para a produção de energia. Tanto o atual como o anterior Ministro, em exercício de funções, limitam-se a ser mera paisagem política.
Se olharmos para a Iniciativa Liberal, sacerdotes máximos do neoliberalismo, como referência da atuação do Ministro atual, o veredito por parte de um deputado é claro, chegando mesmo a afirmar «Muito bem o Ministro ao dizer “vamos continuar”».
Como apontado nos Ladrões de Bicicletas, a política económica em áreas como as taxas de juro têm sido um cortejo fúnebre da economia. Aqui apontamos que este tem sido feito lado a lado com a da soberania.
Continuando a entrevista à ativista pintora de ministros, a jornalista colocou a pergunta: “esta meta [descarbonização] é possível?”. Aqui nós podemos responder com uma das citações do CEO da Galp durante a sua intervenção: “só há um problema de execução para as renováveis, não é um problema de capital nem de tecnologia” – uma resposta correta à qual acrescentamos que também há um problema de política.
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Depois de ler que os CEOs da galp e da edp falaram depois do ministro não consigo deixar de pensar que o significado politico desta acção teria sido enaltecido se os ativistas tivessem tido acesso a 3 baldes de tinta em vez de só 1 mas entendo que logisticamente isso seria dificil de realizar