Descriminalizar as verdadeiras reformas estruturais
O sucesso português no combate à toxicodependência não é resultado de um modelo de liberalização do consumo.
Nos últimos meses, o debate sobre o consumo de drogas na sociedade portuguesa intensificou-se e não é por causa da série Rabo de Peixe, da Netflix. O número de overdoses em 2021 atingiu níveis que não eram vistos desde 2008 e Rui Moreira tem vindo a ensaiar um discurso punitivista e de pânico moral em relação ao consumo e tráfico.
Mesmo estando longe da situação vivida nas décadas de 80 e 90, o atual momento acaba por contradizer a narrativa de que Portugal era o país que tinha conseguido ultrapassar este flagelo, através de uma política radical de descriminalização do consumo. À primeira vista, o sucesso da descriminalização é tal que criou um grande consenso, que vai desde o farol do neoliberalismo - a publicação The Economist - até a figuras ligadas à esquerda como Michael Moore, no seu documentário Where to Invade Next, ou Guilherme Boulos. É raro Portugal estar no centro do debate mundial de políticas públicas e a descriminalização do consumo parece ser uma dessas excepções.
Certamente existem vários factores por detrás do recuo português nesta área - como a deterioração das condições materiais da população nos últimos anos, ou até uma certa amnésia coletiva em relação aos traumas das décadas de 80 e 90 - mas esta tendência torna evidente quais são os riscos de não entender, na devida profundidade, o sucesso da política de luta as drogas e as suas origens.
É O ESTADO SOCIAL, ESTÚPIDO
A Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga nunca foi uma política de descriminalização do consumo e posse. Em 1998, o governo criou um grupo multidisciplinar que teve a autonomia de definir uma estratégia profundamente inovadora, que envolveu alguns dos mais importantes pilares do Estado Social português: o SNS e a Segurança Social. As medidas passaram por tratamentos de substituição, troca de seringas e medidas de integração e suporte no mercado de trabalho (Programa Vida Emprego do IEFP). A descriminalização acabou por ser um passo necessário para utilizar o Estado Social, universal e gratuito, no combate ao consumo de drogas.
O sucesso desta estratégia é inegável. Nas primeiras duas décadas de implementação, Portugal passou de ter 100 mil usuários de heroína para 25 mil. O número de overdoses e de incidência de HIV entre consumidores caíram drasticamente. O constante reforço do papel do Estado Social, para grupos marginalizados pela sociedade, foi a receita para o sucesso. Ao contrário daquilo que Rui Moreira pensa, o problema das drogas resolve-se mesmo com mais medidas sociais.
A não criminalização dos mais vulneráveis é fundamental para qualquer política social. Contudo, não se deve esperar que uma política meramente liberalizante do consumo - quer seja pela descriminalização ou mesmo legalização - fosse resolver um dos problemas mais profundos da sociedade portuguesa do pós 25 de Abril. Como noutros desafios sociais complexos, esperar que o mercado (descriminalizado, legalizado ou até regulado pelo Estado) fosse resolver a dependência de centenas de milhares de pessoas seria próximo do delirante. Por exemplo, o estado do Colorado decidiu enveredar pela legalização do consumo (e da produção) de marijuana. Esta decisão, semelhante ao modelo holandês ou canadiano, tem os seus méritos mas pouco ou nada fez pelas maiores vítimas de décadas de guerra às drogas: a população presa por posse antes da legalização. A experiência deste estado norte-americano, onde o acesso à saúde não é universal e gratuito, torna evidente que um mero modelo de liberalização do consumo deixará sempre para trás os setores mais marginalizados da sociedade.
A estratégia portuguesa tem assumido uma lógica social democrata de expansão de serviços públicos, de forma universal e gratuita, e não na mera facilitação do consumo e mercantilização (‘lógica liberal’). Mesmo as salas de consumo assistido, implementadas nos últimos anos, são mais do que aquilo que o seu nome sugere. Ao seguirem a mesma lógica das políticas iniciadas na década de 90, estes estabelecimentos incluem serviços de enfermagem, refeições e áreas para banhos. Segundo João Goulão, um dos principais arquitetos da política de drogas e actualmente director geral do SICAD, os banhos são o primeiro serviço utilizado pela maioria dos utilizadores destas salas.
O mito criado em torno do milagre da descriminalização tenta apropriar-se do enorme sucesso de um modelo social democrata e resumi-lo a uma única medida, de natureza liberalizante. Não é surpreendente que os meios de direita global, como o The Times e o Cato Institute, alimentem a ideia de que Portugal viveu um milagre causado por uma legislação ultraliberal do consumo. Convenientemente, esta narrativa ignora por completo a necessidade de um Estado Social forte, universal e gratuito. Mais alarmante é existirem ‘socialistas‘ portugueses que também acreditam no milagre da descriminalização.
IR PARA ALÉM DE UMA ÚNICA POLÍTICA DE VANGUARDA
Sendo a estratégia de combate às drogas um conjunto de políticas sociais, o recente aumento do consumo e overdoses não pode ser dissociado das condições de vida dos portugueses e do estado dos serviços públicos. Por mais eficaz que seja a estratégia montada, esta não é imune aos efeitos sociais causados por uma pandemia, alta inflação e uma crise habitacional. Sem respostas do Estado para estes problemas, uma ilha de progressismo acaba por se afundar num oceano de outros problemas sociais.
Mesmo com um número de toxicodependentes drasticamente menor que há 20 anos, a resolução deste problema não é necessariamente mais fácil, do ponto de vista político. A inclusão de mecanismos de combate à toxicodependência no Estado Social foi feita de forma relativamente consensual, durante uma crise que afetava a esmagadora maioria das classes sociais portugueses. Ao contrário das décadas anteriores, um retrocesso nesta frente arrisca-se a ter fortes recortes de classe, como noutros países.
Tal como nos anos 2000, a solução é só uma: expandir o Estado Social. Nos dias de hoje, a habitação não pode ficar de fora de uma política de combate à toxicodependência e integração social. Certamente aparecerão os seus opositores, em especial durante os períodos de crise económico. Pelas reacções de Rui Moreira e as posições de Paulo Portas no início do milénio, devemos esperar que a direita se oponha a grandes progressos sociais nesta área, usando um discurso que varie entre o moralismo-meritocrático (‘usar os nossos impostos para dar casa a quem nem trabalha’) o punitivismo-musculado (‘a polícia tem de prender os traficantes e acabar com o consumo nas ruas’), ou um suposto combate ao despesismo dos institutos públicos e ‘gorduras do Estado’ (o Instituto da Droga e Toxicodependência foi mesmo extinto, em 2011, quando esse tipo de discurso estava no seu auge).
Como na maioria dos debates sobre a expansão do Estado Social em Portugal, o Partido Socialista acaba por ser a grande incógnita. Mas uma coisa é certa: se o PS quer manter o seu legado - uma das verdadeiras reformas estruturais do pós-25 de Abril - o partido terá de abandonar o seu mais recente legado, a redução cega do défice.
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