SUVs: Pneus grandes demais
É oportuno olhar para os argumentos de quem esvazia pneus e para o impacto dos SUVs
Hoje, procurar por SUVs num motor de busca em Portugal já não resulta apenas em ser bombardeado por anúncios de venda de carros. Graças a fotografias surgidas nas redes sociais, em que um veículo de passageiros citadino, com dimensões acima do normal, teve os seus pneus esvaziados e foi presentado com um panfleto encabeçado por “Atenção – o teu sugador de gasolina mata”, agora também encontramos notícias sobre esta ocorrência.
O esvaziamento dos pneus e o panfleto foram catapultados pela comunicação social e até a Assembleia Municipal de Lisboa se sentiu na necessidade de aprovar uma moção a condenar o ato. Num ano em que uma campanha contra os jatos privados inutilizou o aeródromo de Cascais no dia dos namorados, em que, no mesmo tom, três ativistas portugueses foram detidos na Suíça numa ação na maior feira de jatos privados na Europa, e em que centenas de pessoas estiveram em Sines pela transição energética do sistema elétrico (numa ação em que se chegou a fechar uma torneira de gás), a reação e mediatização por um mero esvaziamento de pneus é mais do que notável.
Mesmo assim, é para além de oportuno olhar para os argumentos dos esvaziadores de pneus e para o impacto dos SUVs.
MADE IN AMERICA
SUVs – Sport-Utility Vehicles – como o próprio nome indica, não são carros próprios para as cidades. Informalmente, o termo passou a designar veículos para o uso urbano com características de utilização fora da estrada, como tração às quatro rodas e dimensões extra. Ou seja, Jipes adaptados ao uso comum.
Como boa parte das más modas de consumos exagerados, estes foram popularizados nos EUA. Começando a aparecer, nas formas mais modernas, nos anos 80. No início dessa década, 20% dos veículos estadunidenses eram carrinhas ligeiras e SUVs. Passados 30 anos, chegaram a um enorme 62% do total.
O aparecimento dos SUVs não é um fenómeno isolado, faz parte de uma tendência para o crescimento do tamanho dos veículos (hoje quase tão grandes como os tanques da Segunda Guerra Mundial). Atualmente seria difícil imaginar o carro emblemático do “Regresso ao Futuro”, filme de 1985, como um reduzido DeLorean dos anos 70.
Apesar de alguns - como um célebre jornalista de ambiente - tentarem descalar a situação ao comparar os mais SUVs de todos os SUVs com os menos SUVs de todos os SUVs, é incontornável que o que distingue estes veículos são as suas dimensões.
EMISSORES POR EXCELÊNCIA
Logo à partida, num mundo em que um ártico sem gelo é previsto dentro de poucos anos, o território português continua em seca e Nova Iorque ficou pintada de laranja devido a incêndios no Canadá, entre outros factos desastrosos, é claramente necessário reduzir as emissões de gases com efeito de estufa.
O Sueco Andreas Malm, autor de “How to Blow up a Pipeline”, incentiva, no seu livro (revisto aqui e aqui de um ponto de vista mais institucional por Adam Tooze), o movimento climático a escalar a sua atividade e a passar a sabotar infraestruturas de combustíveis fósseis (como as condutas que transportam esses combustíveis - pipelines). Altamente crítico do posicionamento anti-violência de grupos como o Extinction Rebellion, advoga práticas como a sabotagem de SUVs – atividade que o próprio admite ter participado noutros tempos.
Em termos climáticos, os SUVs, grandes e pesados, obviamente consomem mais combustível e emitem mais. Em média consomem mais 25% que um carro normal. Em termos da sua proliferação , só na União Europeia, enquanto que as vendas do total de veículos caíram 2,4% em 2021, os SUVs cresceram e passaram a ser quase metade das vendas de novos veículos –, o seu crescente número explica um terço do crescimento da procura por produtos petrolíferos no mundo e são o segundo maior contribuinte para o crescimento das emissões de CO2.
Ao longo da década passada, no Reino Unido, as reduções de emissões conseguidas pela introdução de carros elétricos e híbridos foram contrabalançadas pela proliferação de SUVs e pelo aumento do tráfego rodoviário.
Olhando para a tendência do crescimento do tamanho dos carros, como demonstrado aqui, se os carros tivessem mantido o tamanho e potência desde 1980, o crescimento da eficiência por combustível consumido teria sido na ordem dos 60%. Dado o crescimento do tamanho dos veículos, os ganhos foram apenas de 6,5%.
Ou seja, num mundo em que os líderes mundiais se banham em promessas de redução de emissões de gases com efeito de estufa, em simultâneo, convivem com um aumento destas devido à proliferação de carros cada vez maiores.
QUAL É O TAMANHO CERTO?
No seu panfleto, os esvaziadores de pneus fazem questão de ressalvar que independentemente dos SUVs serem alimentado a eletricidade, estes “não deixam de ser poluentes, perigosos e causadores de congestionamento”.
Enquanto que os indignados com os esvaziamentos de pneus têm, em bom jeito neoliberal, remitido a sua utilização a uma matéria de escolhas individuais, explicando o ato de se lhes opor a um preenchimento do ego, não é preciso sequer chegar ao tema das alterações climáticas para perceber o porquê disto não ser verdade.
Apesar dos SUVs serem mais confortáveis e seguros para quem os utiliza, produzem o sentimento contrário a quem se cruza com eles na estrada, e este é o aspeto crucial que explica o seu crescimento.
Ao conduzir um carro normal, o utilizador sente-se em desvantagem perante (um muito maior) SUV e solução passa muitas vezes por adquirir o seu próprio veículo sobredimensionado.
O resultado, denunciado logo em 2002 aqui, é uma corrida às armas. Face à insegurança que alguns SUVs trazem à estrada, mais utilizadores sentem-se incentivados a ter o seu próprio SUV, o que por sua vez traz mais SUVs para as estradas, incentivando os restantes utilizadores a obterem SUVs, por aí adiante.
A insegurança trazida pelos SUVs não diz respeito apenas a um fator psicológico. O aumento de SUVs nas estradas traduz-se mesmo em mais acidentes (SUVs reduzem a visibilidade) e acidentes mais mortais (carros maiores são mais letais) como explicado aqui e aqui.
Mesmo quando não matam, os SUVs induzem stress e aborrecimento. Remetendo a 2013, quando Isabel dos Santos ainda era considerada digna de ser entrevistada pelo Financial Times, o entrevistador sugeria à então presidente da Sonangol que o recente trânsito caótico em Luanda seria justificado pela proliferação de veículos grandes com tração às quatro rodas, que superam estradas em más condições. E apesar de ser difícil medir com precisão o impacto dos SUVs na congestão, vários resultados apontam nesse sentido (como aqui).
Como se não bastasse, veículos mais pesados desgastam mais as estradas e poluem mais o ar devido a partículas dos travões e pneus, como explicado aqui e aqui.
Se olharmos para estes a partir de um ângulo de desigualdades, segundo dados dos EUA, estes são os carros mais populares entre os mais ricos, e dentro da Europa, estes tendem a ser mais populares nos países mais prósperos, com a Suíça a surgir no topo.
GRANDES, MAS ELÉCTRICOS?
A proliferação de SUVs é uma das duas grandes tendências no mercado automóvel, sendo a outra o crescimento dos elétricos. Na hora de cortar as emissões de gases com efeito de estufa, a substituição de carros com motores de combustão interna por carros elétricos é crucial.
Se olharmos para o número de vendas, no universo dos SUV, 16% destes são elétricos, e no universo dos elétricos, mais de metade destes são SUVs. Ou seja, os vários benefícios públicos que têm vindo a ser presenteados a quem compra carros elétricos estão a acabar, em grande parte, como benefícios à compra de SUVs.
As dimensões extra dos SUVs não se refletem apenas em maiores consumos de combustível. No caso elétrico, as dimensões extra também exigem mais materiais, colocando mais pressão sobre as cadeias de fornecimento e exigindo mais matérias primas e energia. Ou seja, não só a substituição da frota automóvel por elétricos é feita para veículos sobredimensionados, como, dada as exigências das dimensões extra, também é mais difícil de a executar.
A POLÍTICA E OS SUV
Como visto acima no caso dos subsídios à compra de elétricos que acabam por ser subsídios à compra de SUV, a proliferação dos SUV não é um assunto que se resume ao mercado.
No caso português, em 2019, a classificação dos SUVs para o pagamento de portagens foi melhorada (passando a pagar menos). Como admitido pelo setor automóvel o governo foi “pressionado pelas multinacionais instaladas em Portugal” a tomar a decisão, e as vendas dispararam em 34%. Ou seja, veículos que outrora eram considerados de uma classe superior, por um mero ato administrativo a mando de grandes empresas, passaram a ser indicados para o trânsito nas cidades e com isso mais baratos de utilizar.
Como apontado por quem esvazia pneus, existe um papel claro das políticas públicas sobre o controle das dimensões do setor automóvel, no qual o estado tem atuado na direção oposta à do interesse público. Enquanto a proliferação de um produto tende a refletir a qualidade deste, o crescimento dos SUVs partiu destes serem péssimos produtos para quem tem de se cruzar com eles.
Se quisermos falar num jargão mais económico, os SUVs transpiram externalidades negativas, e cabe ao estado impedir que as nossas estradas fiquem repletas de veículos sobre-dimensionados, perigosos, altamente poluentes e que comprometem a transição energética.
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