Porquê cozinhar?
As razões pelas quais cozinhamos ajudam-nos a perceber como a comodificação se alastra nas nossas rotinas
"Porquê cozinhar" é a pergunta feita pelo Youtuber de comida Adam Ragusea. Se podemos comprar refeições pré-feitas num supermercado, porque ainda cozinhamos? Será que a poupança económica de cozinhar e a qualidade da comida valem o tempo e o esforço de cozinhar? Será que os mais ricos comem menos comida cozinhada em casa? Se a questão é a qualidade, porque nos esforçamos tanto para cozinhar em vez de gastar algum dinheiro extra e aproveitar a qualidade do restaurante? Por que motivo valorizamos cozinhar quando é cada vez menos necessário saber fazê-lo para sobreviver e prosperar?
Em conversa com o sociólogo Deric Shannon, Ragusea aponta para a desigualdade e o prestígio. As desigualdades não são um fenómeno apenas de rendimentos ou de classe.
Olhando para a indústria musical, é raro comparar artistas pela fortuna acumulada. Geralmente pensamos no reconhecimento, visibilidade nos media, grammys ganhos, número de vezes em que a música é passada nas rádios e plataformas de streaming, etc. Embora estes indicadores estejam relacionados com o dinheiro que os artistas fazem, a conta bancária não tem o mesmo destaque.
Com a comida o princípio não é muito diferente. O uso de especiarias perdeu prestígio na cozinha europeia quando estas se tornaram mais baratas e acessíveis. Poder gabar-se dos dotes culinários é uma forma de competir por prestígio; mostrar uma cozinha bem equipada não é muito diferente de orgulhar-se de um carro.
Além do prestígio, Ragusea menciona ainda outro fator pelo qual não só cozinha como também tem um canal de Youtube dedicado ao tema. “A razão final e talvez a mais importante para cozinhar a própria comida é criar e manter laços sociais”. Comunidade e identidade também são razões pelas quais cozinhamos a nossa própria comida.
Raguesea, estadunidense de ascendência italiana, chega a dizer “o fogão é o santuário onde eu convivo com os meus antepassados” e logo a seguir mostra almôndegas com molho de tomate e apresenta-as como elo de ligação aos seus avós.
No entanto, o que Ragusea apresenta vai muito além do que cozinharmos e do que comemos.
O MESMO RESTAURANTE EM TODO O LADO
Em cidades cosmopolitas como Lisboa e o Porto, os sítios onde se come fora são cada vez menos diversos. Em várias ondas, surgem proliferações de modas internacionais, e não estamos a falar só de McDonalds e Cem Montaditos por todos os cantos. Brunches de inspiração nórdica, buffets de sushi, vegan caffés, barbeques coreanos sucedem-se. Em cada uma das categorias, em boa parte dos estabelecimentos, no interior de cada, é difícil adivinhar se este é em Lisboa ou em ou em outra parte do mundo ocidental; quem quer que nos sirva, não importa de que parte mundo venha, a experiência é quase sempre a mesma.
E aqui não falamos da falta de diversidade como variedade. Os ditos restaurantes tradicionais portugueses (vulgo tascos) mesmo sendo parecidos, conseguem ser mais diversos. Cada restaurante tradicional tende a ter a sua personalidade (muitas vezes, ao invés dos nomes dos estabelecimentos, falamos de ir ao Senhor X ou à Dona Y). Já nas modas descritas acima, muitos dos estabelecimentos são tão parecidos que poderíamos achar que são secretamente parte de um franchise internacional.
MATSUKATE E A COMODIFICAÇÃO
Anna Tsing, antropóloga, no livro que podemos traduzir em “O cogumelo no fim do mundo” (ver sumário por Adam Tooze aqui), tenta traçar a vida nas franjas do capitalismo a partir do matsutake. Este cogumelo ultra-valorizado no Japão prospera em regiões do Oregon devastadas pela indústria madeireira. Quando cortar árvores deixou de ser rentável, chegaram os coletores de matsukate, formando um conjunto heterogéneo de montanheiros brancos, veteranos da guerra do Vietname, estadunidenses de origem japonesa, imigrantes do sudeste asiático e não só.
A cadeia de valor matsutake traz um conceito ao de cima: a comodificação. Esta corresponde à transformação de bens, serviços (e não só) em objetos de troca pura. As características e usos do objeto deixam de importar, apenas o seu valor de troca conta.
Tsing destaca que, embora nunca escapando ao capitalismo, a cadeia de valor do mastutake e os seus intervenientes conseguem escapar-se à comodificação.
Os recoletores nas florestas do Oregon conseguem fugir à disciplina de trabalho e sentem-se senhores de si mesmos; a procura dos cogumelos supera um mero trabalho, com a liberdade conseguida face mundo ao mundo moderno a ser valorizada.
Para os consumidores japoneses, o matsukate é muito mais do que uma simples mercadoria - o seu consumo está interligado com momentos chave na cultura japonesa, ou como dito por um comerciante “podes entender a França sem entender as trufas, mas não podes entender o Japão sem entender o matsutake”.
Notavelmente, um passo intermédio do matsukade redu-lo a uma mercadoria: a fase em que depois de comprados aos recoletores, são organizados por tamanhos por trabalhadores anónimos para depois serem enviados para o Japão.
DESCOMODIFICAR A COMIDA
Não importa qual a posição de alguém em relação ao capitalismo, a fuga à comodificação é uma regra dentro deste.
No caso dos restaurantes, novas modas sucedem-se, tentado apagar a saturação que a comodificação anterior trouxe. Mesmo contra-modas, como casas de hambúrgueres artesanais e estabelecimentos de cerveja artesanal, acabam por se tornar apenas em mais uma moda, numa espiral interminável em que cada vez mais conceitos são comodificados. Ao tornarem-se populares por serem contra-corrente, as causas do seu sucesso atraem essa mesma comodificação.
No fim, os tascos, que não seguem as modas, mesmo longe de escapar ao capitalismo, oferecem refúgios contra a comodificação. Não é por acaso que o bitoque tradicional tem chamado a atenção de quem persegue as modas. Bolos genéricos mas bem portugueses como o bolo de arroz e o queque, apesar da fraca variedade, tornam-se em símbolos de resistência contra uma comodificação que segue modas internacionais à boleia do turismo. É por isso que nos revoltamos quando Gordon Ramsay tenta arruinar a bifana com mais uma moda internacional.
PORQUE COZINHAMOS MESMO?
À luz da comodificação, podemos melhor entender como responder à pergunta de Ragusea. Como este indica, ao entrar na modernidade capitalista, primeiro deixámos de produzir a nossa própria comida, e com a ascensão dos supermercados das multinacionais, pouco resta dos laços com o vendedor A ou B. A comida que compramos é produzida amiúde do outro lado do mundo, passando pelas mãos de pessoas completamente invisíveis para quem a consome. Por muitos padrões de qualidade que possa cumprir, em certo sentido, está morta.
O cozinhar de forma elaborada e morosa transforma a comida genérica na nossa comida.
Preparar carne picada, pão ralado, e polpa de tomate permite que as almôndegas sejam muito mais além das versão pré-feitas do supermercado. Transmitindo as nossas experiências, vivências e histórias para os ingredientes comodificados fá-los transcender uma mera mercadoria; quanto mais transmitimos para estes, mais os descomoditizamos.
Nas nossas mãos, a comida sem vida é ressuscitada e utilizada para trazer vida às nossas relações pessoais, quer em ocasiões especiais como o Natal, quer para apenas mais um almoço de fim-de-semana. Os sentimentos que esta comida invoca vão muito além do paladar.
Na mesma linha dos canais de Youtube de comida como o de Ragusea, outros ganham popularidade na mesma lógica de anti-comodificação: faz-tu-mesmo a tua mobília, cria a tua horta urbana, modifica as tuas roupas à mão. Já fenómenos recentes como o trabalho remoto apontam para possibilidades de um trabalho mais livre, menos sujeito à disciplina moderna, menos comodificado.
A fuga à comodificação dos consumos está presente em toda a sociedade, e especial entre os mais ricos. A recente viagem (trágica) via submarino para ver a ruína do Titanic é uma forma suprema de consumo não comodificado.
A comodificação e a contra-comodificação fazem parte das nossas vidas, e por isso não podem deixar de ser parte da agenda política.
À esquerda cabe articular o conceito de liberdade, em oposição a discursos da extrema-direita de um regresso ao passado cimentado pela xenofobia, racismo e misoginia; Liberdade de definir a própria identidade, e sem estar subjugada a modas internacionais guiadas pelos lucros de multinacionais; Liberdade, dentro e fora da cozinha, que vá além de poder comer uma tosta com abacate num spot turístico arruinado pela sua própria popularidade.
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas, fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
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