Oppenheimer e o empreendedor Bezos
O recém-estrado Oppenheimer mostra-nos quem realmente adciona valor a projetos, das bombas atómicas à Amazon
Spoiler alert: este artigo contém spoilers. Não sobre o filme Oppenheimer, mas sobre The Imitation Game, estreado em 2014.
Podemos partir o recém estreado nos cinemas “Oppenheimer” em duas partes. A primeira conta a história de como este físico estadunidense criou as primeiras bombas atómicas; a segunda como este lidou a nível pessoal com ser o “Prometeu” que trouxe a possibilidade de destruição nunca antes vista.
Aqui, falamos sobre a primeira das partes, e para o fazer começamos por comparar com outro filme – “The Imitation Game” (O Jogo da Imitação, em Português) de 2014. Neste é explorado o papel de Alan Turing - matemático britânico e um dos pais da Computação – na descodificação da correspondência da Alemanha Nazi.
As semelhanças de Alan Turing com Robert Oppenheimer são várias: ambos génios académicos recrutados pelo seu governo para cumprir um papel na Segunda-Guerra Mundial, nos dois casos há que trazer e coordenar outros académicos e a presença de comunistas traz desconfiança.
Há uma diferença drástica entre os dois filmes. No de Turing, a genialidade das personagens é central para a narrativa. Em The Imitation Game, na altura do realizador criar um pico de emoção, ocorre às personagens da equipa de Turing que um canto da correspondência Nazi contém quase sempre uma frase notável: “Heil Hitler”.
O propósito desta descoberta para a narrativa é puramente instrumental; é implausível que esse pormenor tenha travado uma equipa de matemáticos de elite durante meses. Os desafios de Turing e dos colegas foram certamente outros, provavelmente difíceis de transmitir num filme de Hollywood de duas horas.
Um dos feitos do filme Oppenheimer é trazer ao de cima o académico que também foi o administrador da criação da bomba atómica. Além de ser o académico que entendia os detalhes técnicos de como produzir a “engenhoca”, também era o administrador que articulou os vários aspetos da montagem desta, com uma cadeia de produção espalhada pelos quatro cantos dos EUA.
Talvez mais importante do que as questões técnicas, o filme mostra as várias tensões que surgiram. Entre as exigências da Casa Branca, a desconfiança do aparelho militar em relação ao comunismo dos académicos e a apreensão destes em trazer ao mundo as bombas que ceifaram Hiroshima e Nagasaki, Oppenheimer precisou de manter um hábil jogo de equilíbrio.
OPPENHEIMER O EMPREENDEDOR
O contraste entre Oppenheimer e The Imitation Game não é só relevante para filmes sobre académicos durante a Segunda Guerra Mundial, também o é para a forma como entendemos os “empreendedores visionários” e os processos de produção de conhecimento.
Na imprensa, a tendência é para apresentar empresários, em especial no ramo das tecnologias, como génios e astros intelectuais. Nas entrevistas a fundadores de startups, a questão central é “como surgiu a ideia”.
Embora “o projeto” também esteja na linguagem, a ênfase vai para o empreendedor que teve a ideia, e que depois de algum trabalho e sorte, a startup torna-se numa multinacional. Muitas vezes, os gestores são promovidos a sábios, transmissores de conselhos, como era comum no caso de António Mexia, entretanto forçado a sair da EDP por acusações de corrupção.
A lenga-lenga do empreendedor genial oculta, entre outras coisas, a construção e gestão dos projetos. Por exemplo, a Amazon tornou-se na empresa que conhecemos não porque alguém entendeu que, com a internet, as compras podiam ser feitas online; a ideia era comum, e entre todos os que tentaram, a empresa fundada por Jeff Bezos foi a mais bem sucedida.
Se quisermos ser mais simpáticos, colocar o génio e a ideia no centro, ignora o trabalho intenso e o risco necessário para colocar um projeto empresarial em funcionamento. Se formos mais objetivos, esconde que a criação e o crescimento de negócios são, muitas vezes, processos repletos de abusos de poder, exploração e ilegalidades.
Desde roubos de propriedade intelectual (retratado por parte Apple e Microsoft no filme Silicon Valley Pirates de 1999), passando por ignorar regulação (a base da expansão da Uber) e impostos (razão pela a Amazon começou no Estado de Washington), práticas predatórias sobre a concorrência (como as da Amazon, retratadas no livro “The Everything Store”), à exploração laboral que impressionaria Charles Dickens (mais uma vez, no caso dos horários de trabalho da Amazon, e práticas anti-sindicais). Amiúde, tal como apontado pelas acusações de corrupção a António Mexia, o valor acrescentado na capacidade de corromper o poder público.
O caso da Amazon citada quatro vezes neste artigo é paradigmático. Apesar de o currículo em engenharia informática impecável do fundador Bezos, não há muito que distinga as suas práticas das de qualquer homem de negócios implacável, genial ou não. O empreendedor moderno parece-se mais com um Hernán Cortés a pilhar os Astecas do que Leonardo da Vinci a desenvolver trabalhos geniais.
A mensagem é clara: independentemente do brilho das ideias, muito “grande gestor” deixa um rasto de atropelos à ética e às leis. É aqui que a narrativa do génio torna-se conveniente, iluminando o gestor criador de ideias, lançando sombras sobre o trabalho coletivo que envolve a criação de qualquer projeto. Assim, esconde o papel do gestor que organiza, e muitas vezes prevarica; fica oculto o trabalho coletivo, que é construído por muitos mais.
É neste sentido que podemos apreciar Oppenheimer, como um filme que se afasta dos clichés sobre génios, e ajuda-nos a ver as fundações dos grandes projetos. O progresso (mesmo de projetos de destruição massiva) tem líderes, mas trata-se de um processo coletivo, em que cada um segue o caminho construído em comum.
Pensar, escrever, editar e publicar demora tempo e exige sacrifícios. Nós, os Pijamas, fazemo-lo à margem das nossas rotinas laborais, sem receber por isso. Fazemo-lo por serviço público e, sobretudo, para desconstruir a narrativa do economês dominante e reflectir sobre caminhos alternativos para a nossa vida colectiva.
Se gostaste do que leste, apoia-nos. É simples e não te vai custar um cêntimo: subscreve e partilha a nossa newsletter e os nossos artigos. Esse é o maior apoio que nos podes dar.